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Mensagens

Moradias Arpel

Casas geminadas na avenida da Boavista. Vistas de frente, têm a forma de um homem simétrico a levantar pesos. Metáfora ou distracção do arquitecto? Não vi o peixe que gorgoleja, mas as cadeiras  scoubidou estão lá dentro.

Os operários são poucos

Por mania, ou até mesmo tique, passo a vida a substituir palavras — no que escrevo e traduzo, em tudo que leio, sejam livros, textos diversos, anúncios. Na frase deste título , José Tolentino Mendonça devia ter dito operário  e não colaborador . Operário é uma palavra mais católica e também mais necessária.

Revelações japonesas

Como estava sozinha em casa, e para adiantar trabalho, ontem à noite resolvi rever "O Gosto do Saké" ( Sanma No Aji ). Não via um filme de Ozu desde que a minha mãe morreu há quase quatro anos. Agora percebo porquê, deve ter sido um desses mecanismos do instinto que nos defendem de emoções demasiado intensas.  A meio desisti, por excesso de tristeza e também porque percebi que, por mais que tenha escrutinado o filme no passado, não apanhei o principal: o casamento de Michiko é apenas um pretexto para outra coisa mais profunda e mais dolorosa, e está tudo lá (como as montanhas de Cézanne) — nós é que nem sempre estamos preparados para ver. 

Uma experiência

Montar um filme a partir das longas sequências de Jeanne Moreau a caminhar pelas ruas de Paris ( Ascenseur Pour l'Echafaud , de Louis Malle) e Milão ( La Notte , de Michelangelo Antonioni), e dar-lhe este título: O Porto segundo Jeanne Moreau .

Estudo geral das faculdades intelectuais

Ele é enterrado em Charenton com a presença de um padre e, quatro anos depois, quando o cemitério é mudado de lugar, um médico consegue acesso ao seu crânio para realizar estudos de frenologia (outro médico, Spurzheim, faz um modelo do crânio de Sade, que desaparece tempos depois...)

Canal Horeca

Paris: insectos comprimidos numa caixa. Ser um insecto célebre . Toda a glória é risível; aquele que a ela aspira deve realmente ter gosto pela decadência.  Foi a tentação da glória que arruinou o paraíso. Sempre que queremos sair do anonimato, esse símbolo da felicidade, cedemos às sugestões da serpente.  Nada pode estragar completamente alguém, excepto o sucesso. A “glória” é a pior forma de maldição que pode cair sobre um ser.  A glória cai sobre um autor no momento em que ele já não tem mais nada a dizer; consagra um cadáver.  A necessidade de glória vem de um sentimento de total insegurança que experimentamos em relação ao nosso próprio valor, de uma falta de confiança em nós mesmos. E quando hesito em reconhecer-me o menor mérito, desejo uma celebridade cósmica, e gostaria de ser conhecido por tudo o que vive, por um mosquito, por uma larva.  Falar sem ironia dos seus sucessos é sinal de grande indelicadeza (é ainda mais indelicado do que falar das suas riquezas, porque a riquez

O homem mais feliz do mundo

Ouço na rádio a notícia de que está em Portugal, para dar uma conferência, um tipo que é «considerado o homem mais feliz do mundo». Não me engano. O jornalista repetiu diversas vezes que o conferencista — não consegui reter o nome — é «considerado o homem mais feliz do mundo».  A concorrência feroz entre gurus, xamãs, feiticeiros, padres, é tão antiga como a humanidade. Mas antes era preciso provar a autoridade espiritual com milagres ou feitiços. Agora, basta afirmar que um tipo é «considerado» o homem mais feliz do mundo. E o pior é que as palavras não ganharam mais peso no domínio da fé. Pelo contrário. As palavras transformaram-se em cuspo.

Inadaptação

Passei duas horas maravilhosas com uma família russa. Estas pessoas mudaram tão pouco desde os seus grandes romances! É bela a sua inadaptação. Além disso, a adaptabilidade é sinal de falta de carácter e de vazio interior. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Influenciadores do século XX na esplanada

Poético por pura fisiologia

Ah! como gostaria de me limitar unicamente à sensação, a um mundo anterior ao conceito, às variações infinitesimais de uma impressão sentida que teria de exprimir em mil palavras espantosas e desconexas! Escrever diretamente sobre o sentido , converter-me em intérprete do corpo e da alma descoordenada! Transcrever apenas o que vejo, o que me toca, fazer o que faria um réptil se pusesse mãos à obra — um réptil não pois o réptil tem a lamentável reputação de intelectual, mas um insecto. Um livro que seria poético por pura fisiologia . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Uma impostura

Terei lido mal Os Irmãos Karamázov ? Li-o como se de uma blague se tratasse. Dostoiévski destrói o que até então considerávamos uma obra de arte com assertividade, dignamente. Parece-me, após a leitura, que qualquer romance, poema, quadro ou música que não se destrua, quer dizer, que não se construa como um jogo de massacre que o inclua entre as suas vítimas, é uma impostura. Jean Genet, a propósito dos Irmãos Karamázov.
Spartacus na sessão da tarde da rtp memória só pode ser um gesto político.  De um programador engenhoso ou do acaso histórico.

Juízo perfeito

— Não é para fazer sentido, é a fé. Fé, entendes? Fé é acreditar em algo em que ninguém no seu juízo perfeito acreditaria.   Podia ser um desabafo de Cioran nos seus Cadernos , mas é Archie Bunker a dar cabo da cabeça de Edith numa série de televisão.

Estanha Profecia e Outros Textos

«Entre o início de Outubro de 1810 e o final de Março de 1811, Heinrich von Kleist organizou e editou um dos primeiros jornais diários da cidade de Berlim, o vespertino Berliner Abendblätter  (...).»   Assumindo um cariz intencionalmente sensacionalista, Kleist preenche os espaços livres do jornal, os que ficavam no final das colunas de texto dos artigos e dos textos de maior dimensão, com pequenas histórias, relatos de episódios do quotidiano, anedotas, relatórios da polícia de Berlim, relatos de ocorrências estranhas, críticas, opiniões...

Punhal

No conto de Borges, há um punhal fechado na gaveta de uma secretária que sonha com uma mão. Um punhal que não é usado é um objecto inútil, sem préstimo. Mais cedo ou mais tarde, a lâmina reclamará a sua libra de carne. Punhais, balas, tanques. Mísseis adormecidos em gavetas de aço e betão. Que sonhos terríveis povoam o seu sono agitado?

Pretérito Imperfeito do Conjuntivo

(para publicar entre 25 de abril e 1 de maio) Um tipo encostado a uma parede a fumar um cigarro durante uma pausa do trabalho. Para além de rebater todas as imagens de banco (um dos combates mais necessários do nosso tempo — isso e liquidar o discurso publicitário que tomou conta da linguagem), é um dos momentos mais gloriosos da jornada laboral: uma brecha no tempo e no espaço; a condição de possibilidade necessária. (para ler com a entoação do amolador de Sicília!) — Ah, se ele se pudesse ver, se conseguisse sentir a força do seu gesto; e se decidisse fazer qualquer coisa com isso.

Sou como

Manhã cedo. Antes de sair para o trabalho, bebo um café apressado. No rádio, alguém canta qualquer coisa cujo refrão me parece: «Sou como sopa.» Ouço com mais atenção. Afinal, o artista canta um banalíssimo: «Sou como sou.» O encanto desfaz-se. Desligo o rádio. Corro para o autocarro.