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Mensagens

Selfie de um sujeito reles, hidropata, zutista, hirsuto, inventor, mistificador, boémio e galhofeiro.

Mais sobre o sujeito aqui .

Possessão

Estava em casa e esperava que a chuva viesse , na versão da  companhia Público Reservado , é o longo e lento bailado de cinco actrizes a dançar com um texto. É um daqueles raros momentos em que sentimos todo o poder das palavras, a prova cabal de todo o seu potencial eléctrico. Cinco corpos animados apenas por sílabas, como numa espécie de possessão. Cada gesto, cada movimento, cada inflexão ou pausa, é determinado pelas palavras. É por isso que não existe praticamente cenário, porque em lugar de objectos há vocábulos. É por isso que não existe música, porque o som que interessa é o das vozes. E é também por isso que os corpos se deslocam e dispõem no espaço de maneira rigorosamente matemática, porque a sintaxe tem uma ordem, um ritmo próprio, com acelerações e desacelerações, prolongamentos, repetições, ecos. Estava em casa e esperava que a chuva viesse não vale tanto pela construção literária — o texto de Jean-Luc Lagarce está entre A Casa de Bernarda Alba , de Lorca, e Danças a um

Agência de detectives

Este que é o último poema de Raymond Roussel foi publicado em 1932 embora, ao que parece, Roussel tenha parado de trabalhar nele em 1928. Obra de grande fôlego, Roussel refere a existência de várias versões inacabadas, redigidas durante a Primeira Guerra Mundial. (...) Provavelmente, só depois de ter terminado a respectiva redacção é que Roussel encomendou 59 ilustrações ao pintor académico Henri-Achille Zo, que conhecia pelo menos enquanto autor das ilustrações de Ramuntcho , de Pierre Loti. Contudo, não querendo entrar em contacto directo com ele, faz-lhe chegar através de uma agência de detectives instruções descritivas precisas, sem lhe dar a conhecer o texto.  François Piron, Locus Solus. Impressões de Raymond Roussel.

Casque d'Or

Noite alta. Marie chega a um “hotel manhoso” (a expressão é de Truffaut) e é recebida pela “patroa”. Tudo acontece no silêncio, quase sem palavras, como num sonho. A “patroa” acompanha Marie ao longo de uma interminável escada em caracol. A ascensão arrasta-se numa demorada e lenta sequência, degrau após degrau, um andar após outro. Dir-se-ia que Jacques Becker exige que subamos a escadaria com Marie, que sintamos o mesmo esforço, a mesma angústia. A subida termina num quarto escuro, iluminado por uma simples vela e uma janela. A janela abre para uma praça onde está instalada uma guilhotina. À primeira luz da manhã, o carpinteiro Manda, condenado à morte pelo crime de ter amado demasiado Marie, é conduzido ao patíbulo. Os guardas amarram o corpo a uma prancha de madeira, que ele mesmo podia ter feito com as suas mãos, e colocam-no em posição. A lâmina desce, como um relâmpago, sobre o pescoço do condenado. O movimento veloz da lâmina é inversamente proporcional ao da lenta subida de M

Botânica

Georges Franju é um apaixonado pela botânica. Ou melhor, por um qualquer ramo secreto da botânica para o qual não existe nome. Olhos sem rosto começa e termina com árvores. Não existe praticamente um plano exterior onde não se aviste uma ou mais árvores. Altas, sombrias, vigilantes. E nas loucas tentativas do cirurgião Génessier em reconstituir o rosto da filha Christiane, desfigurado num acidente de carro, há a mesma obsessão botânica: o processo é idêntico ao de um enxerto. Génessier arranca a pele do rosto de outras raparigas e enxerta-o no rosto da filha. Ora, um enxerto é sempre uma forma de violência exercida sobre a natureza. E uma operação bem sucedida, tanto em botânica como na medicina, é sempre um triunfo do Homem sobre a ordem natural das coisas . No filme de Franju, porém, como em Frankenstein , de Mary Shelley, é a natureza que triunfa sobre a nossa vontade e os nossos sonhos de poder. No final, resta o corpo incompleto de Christiane, avançando como um fantasma por entre

Que seria de mim sem as minhas horas de escritório?

Tese 1 Porque o que dá valor à viagem é o medo. Ele destrói em nós uma espécie de cenário interior. Deixa de ser possível fazer batota - mascararmo-nos por detrás das horas de escritório e de fábrica (aquelas horas contra as quais protestamos tão fortemente e que nos defendem com tanta segurança do sofrimento de estarmos sós). Assim é que sempre tenho tido vontade de escrever romances em que os meus heróis dissessem: «Que seria de mim sem as minhas horas de escritório?», ou ainda: «A minha mulher morreu mas, por sorte, tenho um grande monte de expediente a redigir para amanhã.» Viajar tira-nos este refúgio. Longe dos nossos, da nossa língua, desligados de todos os nossos apoios, privados das nossas máscaras (não se conhecem as tarifas dos eléctricos e é tudo assim), ficamos inteiramente com a nossa aparência. Albert Camus, Amor à vida . Tradução de Sousa Victorino. Tese 2 Vilém Flusser costumava dizer que não tinha pátria, porque muitas pátrias se acumulavam nele. Sua «filoso

A roda do tempo

«O Oriente é a terra de tudo o que há de maravilhoso», escreve W. H. Wackenroder em Um maravilhoso conto oriental de um santo nu . Neste conto, Wackenroder relata a história de um «santo oriental» que, a certa altura, e na solidão da sua gruta, se convence que tem uma missão essencial a desempenhar no mundo: fazer girar a roda do tempo. Sem ele, a roda do tempo pararia e o mundo saltaria do seu eixo. Noite e dia, este ser maravilhoso não tinha descanso na sua estância. Parecia estar constantemente a ouvir, no interior dos ouvidos, o movimento circular e sibilante da roda do tempo. Perante este ribombar, nada conseguia fazer, não havia nada que pudesse empreender; a gigantesca e assombrosa angústia que continuamente o extenuava impedia-o de ver ou ouvir algo que não fosse o ruído da terrível roda, a girar e a girar, num tempestuoso e sibilante remoinho que chegava até às estrelas. (...) Os sons monótonos emaranhavam-se cada vez mais e de forma cada vez mais selvática: era-lhe impossív

Mais adiante!

É nas últimas sequências do filme de Aleksandr Sokurov que Fausto  revela toda a amplitude do seu incontrolável desejo de superação. Nada é suficiente, nada o satisfaz, «fervilha nele a febre da distância» (Goethe, v. 303). MEFISTÓFELES (Mauricius): Fizemos um pacto. Eu fiz tudo o que prometi, mas tu… FAUSTO: Não é suficiente para mim. Valho mais do que isso. MEFISTÓFELES: Que mais queres? Outro sol? Outro homúnculo? Dois, talvez? FAUSTO: Não é suficiente para mim! A ambição de Fausto não conhece limites. O Diabo é apenas um instrumento — como, de resto, também Margarida — da cega avidez deste «pequeno deus do mundo». Na verdade, Fausto assassina o Diabo, lapidando-o: o símbolo máximo do pecado morre sob as pedras lançadas pelo maior dos pecadores. A sequência anterior ao assassínio de Mefistófeles, junta os dois personagens diante de um géiser. É o momento crucial do filme. O ponto onde o velho mundo e a modernidade se separam irremediavelmente. Onde acaba o mistério e começ

O medo

No seu Quando as Ruas Queimam: Manifesto pela Emergência , você diz que nossa época vai passar para a história como o momento em que a crise virou uma forma de governo. Você está falando do medo que é gerado pela crise? Sim, como efeito. É importante entender como o discurso da crise se transformou num modo de gestão social. As crises vêm para não passar. Por exemplo, nós vivemos numa crise global há oito anos. Isso do lado socioeconômico. No que diz respeito aos problemas de segurança, vivemos uma situação de emergência há quinze anos, desde 2001. Ou seja, são situações nas quais vários direitos vão sendo flexibilizados, em que os governos vão tendo a possibilidade de intervir na vida privada dos seus cidadãos em nome de sua própria segurança. É muito mais fácil você gerir uma sociedade em crise. Então, a sociedade em crise é uma sociedade, primeiro, amedrontada; segundo, é uma sociedade aberta a toda forma de intervenção do poder soberano, mesmo aqueles que quebram as regras, quebr

Impressões de viagem

Café Central As paredes do Café Central, Central Kávéház , em Budapeste, estão quase integralmente decoradas com fotografias de escritores húngaros. Todo o cânone local. Consigo reconhecer Kosztolányi Dezsö, Attila József, Márai Sándor, Endre Ady, Géza Csáth e Orkëny István. Autores que, num momento ou noutro, já foram editados em Portugal. Mas há dezenas de outros nomes e rostos que desconheço por completo. Para um simples leitor português, a grande maioria não passa justamente de um nome e um rosto a preto e branco. Como uma espécie de homenagem ao «escritor desconhecido», morto em combate, na guerra interminável com as palavras e o vazio. Girassóis Ei-la, a estrada entre Budapeste e Belgrado. Um pormenor em linha recta num horizonte de infindáveis campos de girassóis. Não são plantas, mas espantalhos. Milhões de espantalhos, de pendentes e monstruosas cabeças, e de um só olho, enorme e triste, fitando a terra, nunca o sol. Ratko Lalić, Suncokreti , 2000. Prevod, Pr

A propósito de Moloch

Tudo isto, para nos dizer

Tudo isto, para nos dizer, como ninguém o dissera antes, que Deus, o deus da nossa alma e da nossa cultura milenarmente cristãs, estava morto e, com ele, as crenças, os valores, as ilusões, a moral, a política de que era a suprema e materna sigla. Mas o que [Fernando] Pessoa compreendeu, antecipando-se a deduções futuras e óbvias, foi que essa morte de Deus era, ao mesmo tempo, como ensinava entre equívocos, Frederico Nietzsche, morte do homem . Eduardo Lourenço, Fernando, Rei da nossa Baviera.

Em orientes para lá do oriente

Por último, há ainda um curiosíssimo fio de semelhança entre O Naufrágio , de Claude-Joseph Vernet, e A Perda do Hiate Nada , um dos contos incompletos de Fernando Pessoa. Neste conto, Pessoa imagina a história do capitão Ayakwamm, o «Comandante Desconhecido», e o naufrágio do iate Nada , numa zona entre a realidade e o sonho, a razão e a loucura, em «orientes para lá do oriente». Na secção IV do conto, justamente intitulada Paisagens , pode ler-se esta passagem: Não vi nunca pinturas que tanto me impressionassem. Davam a vontade imperiosa de visitar os lugares que [espaço deixado em branco por Pessoa] . Via-se que quem as pintara, o fizera com um desejo supernormal de se encontrar nesses lugares — como um grande pintor exilado pintando a sua pátria. O que de certo sei é que nunca me foi dado ver gravura, pintura, fotografia — quadro ou [espaço deixado em branco por Pessoa] de qualquer espécie que de tão doloroso desejo me enchesse. Eram, em regiões de rochedos altíssimos, formando
Ed Ruscha, The Back of Hollywood , 1968.

To a Green God

Num dos monólogos de Charles Cros , O Dia Verde , o protagonista, Sr. Galipaux, é um empregado de escritório parisiense, que decide acompanhar um casal amigo num passeio ao campo. É sábado, dia de folga, e o apelo da natureza é irresistível. “Oh! o ar, a verdura, correr, pular, dançar, cantar, lalai, lalai, um fato leve, o meu panamá e ala que se faz tarde!” Pouco a pouco, porém, o suave sonho de uma digressão pelos bosques, transforma-se numa espécie de pesadelo verde. Não é apenas a natureza que é verde, tudo à sua volta parece plasmado nessa cor. As pessoas estão vestidas de verde, há um papagaio verde, a comida é verde, as mesas e as cadeiras da casa de pasto são verdes, o absinto é verde, as casas têm portadas verdes, tudo, de uma maneira ou de outra, e em graus diferentes, é verdíssimo. Num só dia, o personagem percorre todos os círculos do inferno verde, acabando na cama com icterícia, "verde como puré de ervilhas". Em O Raio Verde , de Eric Rohmer, inspirado no l

As Afinidades Electivas

Vieira da Silva, Le bout du monde , 1986. Biblioteca de Antonio Candido. Porto

Isto está ruim para os cavalos

Almanaque de Outono , de Béla Tarr, começa com uma epígrafe sobre fundo negro: Mato-me e não vejo o carreiro; Perdemo-nos, sim! Tanto monta! Estou que nos leva o diabo, Faz-nos dar volta atrás volta. Trata-se de um excerto da segunda estrofe do poema Demónios , de Púchkin, que, de resto, também serviu de epígrafe ao romance com o mesmo título de Dostoiévski . Ora, o curioso é que o poema contém vários versos que parecem legendas de planos de O Cavalo de Turim , o filme-monumento que Tarr realizou quase 30 anos após o  Almanaque de Outono . Galopam nuvens, rodam nuvens (...) Preto é o céu, a noite breu. Lá vou, lá vou, por campo aberto, Guizos din-din a tilintar... Nem que não queira mete medo, Medo o descampado alvar! «Arre, cocheiro, anda!...» — «E forças? Isto está ruim para os cavalos; (...) No jogo túrbido da lua, Ajunta-se o bando horrendo, Díspar, vasto, redemoinha Como as folhas em Novembro… (...) Aleksandr Púchkin, O cavaleiro de bronze e outros poemas . Tradução de Nin

Reality Show

Se, num sonho louco, Béla Tarr decidisse fazer um reality show , o resultado talvez não andasse longe do Big Brother . Almanaque de Outono é uma espécie de Big Brother filmado por um fanático da filosofia e génio do cinema.

Haverá outro tema?

No fabuloso texto de Edward Bond,  Using Lulu , dedicado ao teatro de Frank Wedekind, e publicado no Manual de Leitura de Lulu , há digressões que podem ser lidas como comentários a Provisional Figures . De resto, são infindáveis as ligações que se podem estabelecer entre as duas peças. O tema é exactamente o mesmo. Haverá, na verdade, outro tema? O capitalismo – o Dinheiro Total – subordina tudo às necessidades do mercado. Isto transforma de forma profunda a sociedade. Na verdade, a sociedade ocidental é a primeira que não cria uma cultura – ela é apenas um sistema. Não vivemos para criar uma cultura – existimos para manter um sistema. E, ao mantê-lo, não promovemos a humanização, como sucederia caso criássemos uma cultura. O capitalismo desumaniza-nos, não porque não seja suscetível de persuasão moral, mas por razões de ordem estrutural. Ao dinheiro dá-se precedência sobre outros elementos da sociedade, e assim damos novos sentidos a nós mesmos e à sociedade. (...) Para se autopre