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Mensagens

Como contar, outra vez, uma história de judeus em fuga? Christian Petzold escolheu um modo arriscado de responder a uma pergunta difícil. Ao transpor a deriva de Georg para o nosso tempo, sem roupa da época, sem símbolos nazis, sem qualquer artifício, “Em Trânsito” adquire uma força potencial — como se fosse filmado sobre um vulcão adormecido. A perseguição não é sequer um facto que podia ter acontecido aos nossos avós ou aos nossos pais; a distância foi suprimida — estamos dentro da fuga, da incompreensão, da vergonha, da infâmia, da burocracia, do desespero. Somos obrigados a pensar o que se passa sem os rodeios da História, de uma forma mais crua, talvez, e também mais sensível. O que acontece, outra vez, ao amor num sistema opressor? Cada uma das personagens tem a sua história para contar e, dadas as circunstâncias, precisa de o fazer o mais depressa possível. O filme vai guardando esses relatos que se assemelham a gritos surdos. Melissa, Driss, o maestro, a arquitecta, o médic
Acto Isolado Podia ser um poema de cinquenta e tal páginas: palavras cheias de pressa; rudes, talvez; um pensamento inacabado; nem sequer ainda um pensamento, apenas um jacto de sons. Mas não, designa a “emissão de um recibo pela prática esporádica e imprevisível de serviços ou transmissão de bens”. Mais uma vez, as finanças passaram a perna à nomenclatura da poesia.

Non capire è importante

Dante è un enigmatico, e almeno una volta accettiamolo per quel che è. Ha i suoi motivi per non farsi capire subito, e qualche volta per essere assolutamente impenetrabile. È una corsa stremante tra luci e tenebre, stelle, lune, soli, misteriosi frammenti di edifici regali e sacri, con mutile, occulte scritte. Il percorso è talora nitido, geometrico; talora è paludoso, è uno strisciar tra cunicoli ed antri. Non capire è importante. Giorgio Manganelli, Corriere della sera, 1984

Férias

Fim de umas curtas férias de quatro dias. Esperei longa e ansiosamente por estes dias para pôr em ordem várias ideias adiadas. E, no entanto, não consegui fazer nada do que planeara. A sensação de «liberdade» bloqueou-me. Já me acontecera antes. Como um preso a quem tivessem concedido alguns dias de liberdade condicional e que não soubesse o que fazer com o tempo. Lembro-me de Austerlitz, o personagem de Sebald, que quando finalmente se reforma e tem tempo para coligir os seus estudos em livro, é incapaz de realizar o grande projecto da sua vida: «Quanto maior o esforço que ao longo de meses dediquei a esta tarefa, mais lamentáveis me pareciam os resultados e mais o mero abrir dos maços e virar das incontáveis páginas por mim escritas me invadia de um sentimento de relutância e asco, disse Austerlitz. E, no entanto, ler e escrever tinha sido sempre a sua actividade favorita.»

Dentro e fora

“Como escrever o romance de toda a gente? Como é estar no Porto quando isso é o mesmo que estar em Aachen? Como é estar impregnado de um  spleen  que subtrai as personagens à História e a todo o enraizamento local? Como é ver o mundo familiar a partir de um olhar que apreende a sua paradoxal estranheza?” O Rui foi para fora. Aproveito para espalhar umas estrelas e depois vou para dentro.

Intimidade dos Armazéns do Chiado

O pajem do pajem

(...) Já o trilho começava a subir e já a noite começava a cair. Simão pegou de novo no bandolim, que manejava como um feiticeiro. A história senta-se de novo numa pedra atrás dele e escuta com grande assombro. É uma tarefa cansativa, esta de contar histórias. Sempre a correr atrás de um rapazote romântico, pernalta e bandolineiro, e sempre à escuta de tudo o que ele canta, pensa, sente e diz. E o diabo do pajem não pára quieto, e nós temos de ir sempre atrás dele como se fôssemos na verdade o pajem do pajem. Ouve um pouco mais, paciente leitor, se tens ainda ouvidos, pois dentro em breve diferentes personagens prestarão as suas mais submissas reverências. As coisas animam-se. Surge um palácio; achado para um pajem à procura de castelos em ruínas. Mostra agora a tua arte, filho, senão estás perdido. E ele mostra. Canta para a donzela que se dá a ver na varanda do primeiro andar com voz tão doce, tão mentirosa, que o coração dela necessariamente se comove. Temos penedos, pinheiros e paj

Mon Cas

Ando às voltas com Mon Cas , de Manoel de Oliveira. Em especial, a última parte do filme, que adapta o Livro de Jó . Tenho muitas perguntas. Em tempos, Oliveira explicou a escolha deste texto bíblico da seguinte forma: O substracto comum é o homem. É a humanidade. A existência do ser perante os homens e perante Deus. É a posição... a posição do homem, de um lado e de outro.  (...) E a figura de Job é como se fosse a figura da própria Humanidade, da humanidade pecadora, castigada por Deus e que tem que expiar o seu pecado. (Manoel de Oliveira - Cem Anos, p. 114.) A explicação não me satisfaz. Há qualquer coisa muito mais pessoal. Jó não será uma máscara de Manoel de Oliveira? As provações de Jó não serão uma representação dos seus filmes? A escolha do texto não será uma declaração de fé do cineasta em si próprio, no seu trabalho? Uma fé inabalável no cinema, no poder criador da arte? Uma fé à prova de todas as contrariedades? Depois disso, Jó viveu ainda cento e quarenta anos,

Lavandaria

Há várias semanas que é impossível secar a roupa em casa. Pequenas multidões socorrem-se das lavandarias de bairro. Um a um, entregamos os lençóis ao olho redondo e guloso da máquina. Enquanto se espera, uns mergulham nos telemóveis. Outros abandonam-se aos rodeios da sonolenta telenovela que passa na televisão. Outros ainda fixam-se nas voltas que a roupa dá no tambor da máquina. E, de repente, numa espécie de estranha simetria, o pensamento também volteia entre o passado, o presente e o futuro, mas sem o programa certo, sem detergente e sem amaciador.

Tragédia ou comédia?

Passei lá por mero acaso: um alfarrabista* em Faria Guimarães com um álbum de Tom e Jerry e “Equador” de Henri Michaux na montra? Ahah, a cidade está a crescer muito para além das jogadas banais do turismo — isto sim, é hospitalidade. Para me manter a par das actualidades, comprei “Cimbelino - Rei da Britânia” (tradução de José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto e Luís Miguel Cintra). A chuva pode vir. *Na verdade não se trata apenas de um alfarrabista, é também uma oficina de encadernação e restauro de livros, e a nova casa das edições tipográficas 50kg .

Aquilo a que chamamos pensamento instantâneo

Compreenda, escrever aforismos é muito simples: vamos a jantares, uma senhora diz um disparate, isso inspira uma reflexão, regressamos a casa e escrevemo-la. É mais ou menos assim o mecanismo, não é? Ou então à noite temos uma inspiração, um princípio de fórmula, às três horas da madrugada escrevemos essa fórmula. E finalmente isso torna-se um livro. Não é sério. Não se pode ser professor universitário com aforismos. Isso não é possível. Mas, numa civilização em desagregação, este género de coisas está muito bem. É evidente, não se deve nunca ler um livro de aforismos de uma ponta à outra. Porque temos a impressão de caos e de uma falta de seriedade total. É preciso lê-lo unicamente ao anoitecer antes de nos deitarmos. Ou num momento de tristeza, de desgosto. Ler Chamfort de uma ponta à outra não faz sentido, pois os seus aforismos são generalidades instantâneas. É pensamento descontínuo. Você tem um pensamento que parece explicar tudo, aquilo a que chamamos pensamento instantâneo. É

Odradeks

Vento e chuva. Por toda a parte, há guarda-chuvas desfeitos e abandonados pelo chão. Lembram odradeks perdidos. Tristes odradeks que se afastaram demasiado de casa e que, exaustos e ensopados, desistiram de achar o caminho de volta.

Sou, neste momento, apocalíptico

Durante um tempo, quando era jovem, acreditei na revolução como acreditam os jovens de hoje em dia. Hoje em dia acredito um bocado menos. Sou, neste momento, apocalíptico. Vejo defronte de mim um mundo doloroso, cada vez mais vil. Não tenho esperanças; portanto não esboço sequer um mundo futuro. Pier Paolo Pasolini, Julho de 1971.

A banana imanente

É através dos símbolos e não da economia que chegamos ao centro nevrálgico do “capitalismo”. Aqui nada é literal; tudo o que dizemos é uma metáfora, tudo em que tocamos é sempre algo que representa outra coisa . O caso mais recente é a banana de Maurizio Cattelan. O que aconteceu na feira de arte contemporânea Art Basel de Miami é revelador da transformação do sistema económico numa teoria unificadora: colar uma banana à parede; vendê-la por 120 mil dólares, comê-la e dizer que é uma performance ( chama-se “Artista com fome”). Mas o melhor está exposto neste parágrafo: O encarregado das relações com museus da Galerie Perrotin, Lucien Terras, explica que o acto não diminui o valor da obra. “Ele não destruiu a obra de arte. A banana é a ideia”, disse Terras em declarações ao jornal Miami Herald. A banana em exposição não é eterna, sendo regularmente substituída. E por isso, mais tarde, o director da galeria, Emmanuel Perrotin, montou de novo a obra de arte de Cattelan nas paredes