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O pajem do pajem

(...) Já o trilho começava a subir e já a noite começava a cair. Simão pegou de novo no bandolim, que manejava como um feiticeiro. A história senta-se de novo numa pedra atrás dele e escuta com grande assombro. É uma tarefa cansativa, esta de contar histórias. Sempre a correr atrás de um rapazote romântico, pernalta e bandolineiro, e sempre à escuta de tudo o que ele canta, pensa, sente e diz. E o diabo do pajem não pára quieto, e nós temos de ir sempre atrás dele como se fôssemos na verdade o pajem do pajem. Ouve um pouco mais, paciente leitor, se tens ainda ouvidos, pois dentro em breve diferentes personagens prestarão as suas mais submissas reverências. As coisas animam-se. Surge um palácio; achado para um pajem à procura de castelos em ruínas. Mostra agora a tua arte, filho, senão estás perdido. E ele mostra. Canta para a donzela que se dá a ver na varanda do primeiro andar com voz tão doce, tão mentirosa, que o coração dela necessariamente se comove. Temos penedos, pinheiros e pajens, pajens não, um pajem apenas, sim, o nosso Simão que neste momento reúne na sua rica figura, acima descrita, todos os graciosos pajens do mundo inteiro. Temos canções e música de bandolim, temos a doçura que o rapaz sabe esconjurar do seu instrumento e temos o que em circunstância alguma poderia faltar, uma meiga donzela vestida de branco, que envia um sorriso para baixo e com a mão chama para cima. A canção conquistou um lugar no coração dela, porque é uma canção tão simples e doce e bonita. (...)

Do filme “Ele, o chapéu, assenta nela, a cabeça - Histórias de Robert Walser” de Walo Deuber, tradução de Isabel Castro Silva

Comentários

c disse…
As histórias de amor de Walser são formidáveis porque ele pega nos clichês e atira-os para o chão como piões. Vejamos o caso do pajem: não falta nada, o rapaz tem um bandolim, depois aparece um castelo em ruínas e uma donzela. As histórias de cordel dizem que a donzela está em perigo, então Walser repete isso mesmo (mas não deixa de insinuar que a donzela é o próprio perigo). Tudo encaixa, desencaixa e rodopia. O ritmo vêm de todos os lados e parece não ter fim. Ah, ainda bem que a literatura expulsou Walser.
Querida Cristina, há que, humilde e rapidamente, repor a verdade: no caso desse conto e julgo que o chamado "Casta Noite", socorri-me da boa tradução da Isabel Castro Silva, constante das Histórias de Amor (no caso em questão, "Simão - Uma História de Amor" é, aliás, o primeiro conto do referido livro). Nesses casos (em que tinha boas fontes) limitei-me a transcrever. As restantes, sim (e piores, pois claro), terei sido eu. Fico contente por já teres visto o filme, que passou, e ainda hoje passa, tão despercebido.