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Mensagens

Uma geração de frangos sem asas

As cartas mais divertidas são as que Flannery O’Connor escreveu à desconhecida “A”.* Logo na primeira carta (20 de julho de 1955), terceiro parágrafo: Para além de idiota, a crítica do New Yorker não estava assinada. É um daqueles casos em que é fácil ver que o sentido moral foi eliminado de certas faixas da população, do mesmo modo que eliminaram as asas de alguns frangos para produzir mais carne branca. É uma geração de frangos sem asas — era a isto, suponho, que Nietzsche se referia quando afirmou que Deus estava morto. ———————- * Não assim tão desconhecida. Chama-se Hazel Elizabeth "Betty" Hester . Felizmente ainda ninguém fez um filme sobre a sua vida.

Mamute

Ao fim da tarde, após nove horas ou mais de «teletrabalho», saio e dou uma volta pelo bairro. Desço a Lapa, contorno a Praça da República, sigo pela Rua do Almada, viro à direita em Ricardo Jorge e regresso por Mártires da Liberdade, e Antero de Quental. Lembro-me de ter lido que Murnau meteu 10 kg de chumbo nos sapatos de George O’Brien para obter aquela imagem meio simiesca em «Aurora». Como compreendo agora o esforço do actor! Nestes tempos pesados, maciços, desesperados, ao cabo de quarenta minutos de caminhada, não sei se sou eu que avanço se é um mamute em meu lugar.

Conheces o conto “Os Mortos” de Joyce?

É uma pena “O Hábito de Ser: Cartas de Flannery O’Connor” não estar traduzido para português. Ela também é muito boa a escrever cartas. Mais um excerto, desta vez de uma carta escrita a Ben Griffith a 6 de agosto de 1955: (...) Quando li o teu conto pensei logo em dois outros contos que acho que deves ler antes de começares a reescrever. Um é “O Lamento” de Tchékhov e o outro “Guerra” de Luigi Pirandello. (...) O teu conto, como esses dois, é essencialmente a apresentação de uma situação patética e quando apresentas uma situação patética tens de a deixar falar por si mesma. Quero dizer que deves apresentá-la e largá-la. Tens de deixar as coisas na história tomar a palavra. Como autor, não deves forçar a situação e parece-me que no teu conto tendes a fazer isso de vez em quando. (...) Deixa o velho seguir o seu caminho sem os teus comentários e deixa as coisas que ele vê criar os efeitos patéticos. Conheces o conto “Os Mortos” de Joyce? Repara como ele faz a neve funcionar  na h

Telefone

O meu telefone morreu durante a noite. Ontem de manhã, quando lhe peguei, estava frio como vidro. Tinha 10 anos. Uma eternidade para o tempo médio de vida de um telefone. Morreu assim, sem considerações, como lhe era necessário. Encomendei, a custo, um novo. 85 euros. 83,39 euros, para ser exacto. O meu irmão não acredita que um telefone possa custar apenas 85 euros. Pergunta-me se tenho a certeza de não ter encomendado apenas uma capa para o telefone em vez do aparelho. Também na vida secreta dos telefones, o mundo divide-se entre ricos, pobres e remediados. Aos pobres resta o trabalho simples, eficaz, sem brilho. Até ao último dia. Mas o que se passará no escuro, por trás do ecrã? Que sonho, que grãozinho de magnificência ou de revolta ocultam dentro de si?

Uma escritora intensivista

O acervo de Flannery O’Connor tem quatro manuscritos de “The geranium”, um manuscrito de “An exile in the east”, quatro manuscritos de “Getting home” (erradamente classificados como manuscritos de “Judgment day”) e dezassete manuscritos e fragmentos de “Judgment day”. O que Flannery O’Connor faz entre “The geranium” (1946) e “Judgment day” (1964) é mais ou menos o mesmo que Joaquim Manuel Magalhães fez em “Um toldo vermelho”. Flannery executa essa razia sem o dramatismo dos poetas. Apenas avança porque é necessário, urgente e não pode ser de outro modo. Avança com a suavidade de quem desbrava um caminho de silvas. Mas não são as silvas que deita fora.

Trânsito

Ligo o rádio. Enquanto tomo café e aguardo pelas notícias, o pivô transmite a informação de trânsito. Há mais de dois meses que as estradas estão praticamente vazias, sem filas, sem caos, sem nada. Hoje, pela primeira vez, deu-se um despiste numa estrada de Lisboa. Pareceu-me adivinhar uma ligeiríssima expressão de alívio na voz do jornalista.

Uma boa maionese é difícil de encontrar

Flannery O’ Connor era capaz de gostar do título deste artigo académico . Só do título (com a sua mania para truncar palavras, talvez até dissesse: A good mernaise is hard to find ) porque a maionese é pretexto para escrever também sobre a relação entre mãe e filha e disso ninguém gosta — que o digam as personagens dos contos. Bishop devia ter ido a Milledgeville. Levava um frasco de maionese caseira, faziam um churrasco e ia ser uma grande borga — com pavões incluídos na banda sonora.

Ah, é poeta!

A polícia bate na porta: a poeta Ingeborg Bachmann, um pouco sonolenta, levanta e se prepara para atender ao chamado. Estamos em 1954 e, ao contrário do que se poderia imaginar, não se trata de uma batida da polícia secreta nos tantos países totalitários da época. Uma vizinha de Bachmann denunciou às autoridades o ruído causado pela poeta durante a madrugada: o barulho ritmado das teclas da máquina de escrever ecoa na noite e interrompe o sono dos justos. A poeta diz aos policiais que as ideias só vêm à noite e que o barulho da praça durante o dia atrapalha seu trabalho. “Mas em que diabos a signorina trabalha à noite?”, perguntam os policiais. Ela entra no apartamento e volta com uma folha datilografada, um poema em alemão que testemunha seu ofício. “Ah, é poeta!”, respondem os policiais. Tudo se resolve, mas Bachmann ainda escuta os policiais comentando quando se afastam: “Poemas tão curtos para tanto barulho!”. (...) Kelvin Falcão Klein escreve sobre Ingeborg Bachmann aqui .

Vida e obra

Leio no Público um artigo de Luís Miguel Queirós sobre a edição de poesia em Portugal. O texto termina com um comentário importante do Changuito : «[o leitor e livreiro] confessa que acha que “o panorama da poesia portuguesa anda muito fraquinho”. E os editores não são isentos de culpas. “Vejo muitos livros que me fazem pensar: então não houve ninguém que dissesse a este autor ‘vai lá trabalhar mais uns anos nisto, que não está pronto’?”» Ocorrem-me as palavras de Brigge , o personagem de Rilke, que a páginas tantas diz: «Ah, mas que significam os versos, quando os escrevemos cedo! Devia-se esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e se possível durante uma longa vida, e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons. Porque os versos não são, como as gentes pensam, sentimentos (esses têm-se bastante cedo), - são experiências.» Rilke publicou o seu primeiro livro de poesia antes dos vinte anos.

Desde que o samba é samba é assim

Há uma história da Laurie Anderson sobre Thomas Pynchon muito engraçada. Ela queria fazer uma ópera baseada em Gravity’s Rainbow. Ele concordou, desde que a peça fosse escrita apenas para banjo. Parece uma história zen — quer dizer, tem o mesmo tipo de humor e leveza. Para além do divertimento de juntar Laurie Anderson e banjo na mesma circunstância, o raciocínio de Pynchon com recurso a locução subordinativa condicional é muito útil. Por exemplo, esta vontade das entidades patronais medirem a temperatura dos trabalhadores. Porque não? Desde que seja no cu.
Entretanto passou-me pela cabeça uma ligação (ainda mais) disparatada: Flannery O’Connor e os bonequinhos de South Park? Sem os vómitos, claro. Pesquisei no Google. Esta afirmação cautelosa prova que a literatura já foi toda esquadrinhada: There's some “South Park” in Flannery O'Connor, but she made fun of everything. CENA 1 — Do the handicapped go to hell? — The lame shall enter first! [into the kingdom of heaven] CENA 2 — Go back to hell where you came from, you old wart hog. ( Said Mary Grace to Mrs. Turpin ). — Yeah! Não vale a pena desenvolver mais, vou para a cama ler outra vez “Revelação” — a ver se tenho sonhos interessantes com porcos. Ou uma epifania do género.

Influencers

Parece-me que as coisas finalmente começam a acalmar um pouco. As boas almas dos jornais, os grandes educadores televisivos do povo, os influencers de facebook, já desistiram, pelo menos em parte, de nos aconselhar enxurradas de livros, filmes ou peças de teatro online para «passar melhor o tempo em casa». Não é justo para Kurosawa, mas quando penso nestes bons «conselheiros», a imagem que me ocorre é a de Yuzo, personagem de «Um domingo maravilhoso», a dirigir a «Sinfonia Inacabada», de Schubert, diante de uma orquestra silenciosa de músicos invisíveis, num anfiteatro vazio. Não, não é justo para Kurosawa.

Tenho a certeza de que os escreveu bêbado

(...) O que me leva ao assunto embaraçoso do que não li e não me influenciou. Espero que nunca ninguém me pergunte isso em público. Se o fizerem, tenciono parecer misteriosa e murmurar "Henry James Henry James" — que seria a mais completa mentira, mas não importa. Não fui influenciada pelos melhores. As únicas coisas boas que li quando era criança foram os mitos gregos e romanos que saquei de uma colecção de enciclopédias infantis chamada “O Livro do Conhecimento”. O resto era uma Lavagem com L maiúsculo. O período Lavagem foi seguido pelo período Edgar Allen Poe que durou anos e consistiu principalmente num volume chamado “Os Contos Humerísticos de E.A. Poe”. Eram extremamente humerísticos — um era sobre um jovem demasiado vaidoso para usar óculos, por causa disso casou-se, sem querer, com a sua avó; outro era sobre uma bela figura de homem que no seu quarto tirava os braços de madeira, as pernas de madeira, a peruca, os dentes postiços, a prótese fonatória, etc.; outro sob

In the face of a purifying terror

“O Calafrio Permanente” (The Enduring Chill) parece o título de um conto de Edgar Allan Poe. Mas as semelhanças não se ficam por aí. O catolicismo de Flannery O’Connor é tremendo e prolonga-se para além do fim — como nas histórias de terror de Poe. O Espírito Santo que assusta Asbury no último parágrafo é tão terrível como a figura humana enorme e branca como a neve que encerra as “Aventuras de Arthur Gordon Pym”. Flannery O’Connor obriga a palavra “salvação” a fazer triplos mortais consecutivos. (...) It was then that he felt the beginning of a chill, a chill so peculiar, so light, that it was like a warm ripple across a deeper sea of cold. His breath came short. The fierce bird which through the years of his childhood and the days of his illness had been poised over his head, waiting mysteriously, appeared all at once to be in motion. Asbury blanched and the last film of illusion was torn as if by a whirlwind from his eyes. He saw that for the rest of his days, frail, racked, bu

Obras para quê?

Vale Formoso, Antero de Quental, Largo da Lapa, Regeneração. A Utopia já reabriu, mas não há livros novos na montra. Aceno a um Herculano mascarado. Ele devolve o cumprimento. Há um vidro entre nós. Praça da República. Alguém escreveu sobre um aviso camarário de obras a frase «Obras para quê?» A interrogação, neste momento, parece ser válida para tudo: arte, literatura e construção civil. Rua do Almada, Ricardo Jorge, Largo do Mompilher. As sapatilhas estão velhas e fazem-me doer os pés. Rua da Conceição, Mártires da Liberdade. A Académica continua fechada. Praça da República, Rua da Lapa. A velha caixa de esmolas da Capela do Senhor do Olho Vivo foi assaltada. Tentaram arrancar a caixa da parede, mas as moedas não saíram do sítio. Antero de Quental, Vale Formoso. A tinta verde da porta da rua está a descascar. Há ferrugem na fechadura. Dores nas pernas e nas costas.

Não sei resumir-me

- Que pretendeu então exprimir com as suas interrogações? - Pois bem, para aqueles que nunca me leram, e são muitos, quis exprimir o desconforto da existência, a separação do homem das suas raízes transcendentais; quis exprimir igualmente que, mesmo enquanto falavam, os homens não sabiam o que queriam dizer e que falavam para não dizer nada, que a linguagem, em vez de os aproximar uns dos outros, não faz senão separá-los ainda mais; quis traduzir o carácter insólito da nossa existência; quis parodiar o teatro, isto é, o mundo, e o que escrevi foi em parte, evidentemente, uma paródia, talvez mesmo a paródia da paródia; enfim, que quer que lhe diga, quis dizer o que quis dizer e, umas vezes bem, outras vezes mal, disse-o, e muitas outras coisas ainda que estão nos meus livros. Como vê, não sei resumir-me. Eugène Ionesco, numa entrevista publicada como apêndice a O Solitário . Tradução de Luiza Neto Jorge.

Ontem

Talvez tenha sido o dia mais quente do ano. Cheirava a Verão. Decidimos sair um pouco para apanhar sol e desentorpecer as pernas. Na rua, as pessoas afastavam-se umas das outras com um silêncio envergonhado, que dissimulavam atrás das máscaras. Um saco do lixo descia a Lapa aos saltos, entre duas gaivotas enlouquecidas.
Os caras destapadas Podia ser o nome de um movimento de contestação ou até mesmo de coisas mais perigosas. Nada disso, apenas andam pelas ruas, entram nas lojas e nos autocarros sem máscara.

Milledgeville, Geórgia.

Flannery fez vários convites para que Elizabeth a visitasse na propriedade rural "a algumas milhas de Milledgeville". A poeta nunca foi.  Em uma carta posterior, enviada a Robert Giroux, ela lamenta não tê-la visitado, para depois confessar, entre parênteses: "Acho que eu tinha "medo" da Flannery!".