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Mensagens

No domingo, para além dos habituais de Ken Loach e um ou outro turista, havia um grupo de miúdos da Escola de Futebol Hernâni Gonçalves, devidamente equipados, na sala 2 do Batalha. Curtirmos imenso a sessão de  Tickets  e  Looking for Eric  e até houve palmas no fim — parecia que estávamos num estádio a ver um jogo. Faz tanta falta, o cinema como divertimento.
Se soubesse escrever contos, escrevia sobre a morte de Schönberg. O mais difícil era controlar a exuberância dos factos.

Influenciadores do século XX

Scott Bradley : The Twelve-Tone System provides the 'out-of-this-world' progressions so necessary to under-write the fantastic and incredible situations which present-day cartoons contain.

Ouro

A literatura argentina é um lugar estranho. O número de escritores muito bons ou extraordinários parece infindável. É como seguir um filão numa mina de ouro. Acabo de ler mais um que não conhecia: Isidoro Blaisten .

A hipótese da falha tectónica

Talvez a grande força do cinema não esteja em saber contar uma história, como tantos reinvindicam, mas em conseguir instaurar uma fractura estrutural catastrófica. Afastar-se do território manso das narrativas e caminhar para zonas mais insólitas nem é tanto uma coisa do futuro mas de um passado muito antigo e esquecido. (E é por isso que alguns filmes parecem obras de bruxas.)
 

Sistema de atracção de capital humano

Leio no jornal que uma das medidas do «Plano de Acção para as Migrações» do governo, que, na prática, impõe critérios discriminatórios na escolha das pessoas que podem entrar legalmente em Portugal, é «instituir um sistema de atracção de capital humano». O despudor com que os burocratas recorrem ao linguajar mais básico do marketing e da publicidade para se referirem a nós, o chamado «capital humano», provoca-me vómitos.

O capital humano

O capital humano levanta-se cedo e cansado. Com o calor, dorme pior. Os autocarros enchem-se de capital humano como sardinhas em lata. O capital humano instala-se nos escritórios, nas lojas, nos shoppings , nas fábricas, nas estufas de tomate. Ao almoço, a maioria do capital humano devora tupperwares . Algum capital humano vai ao restaurante. Ao fim do dia, o capital humano regressa a casa ou aos quartos alugados. Cheira dos sovacos, da boca, dos pés. Faz o jantar, come, prepara os tupperwares para o dia seguinte. Algum capital humano bebe um copo na esplanada e janta fora. Certo capital humano limpa as escadas e as casas de banho dos escritórios, das lojas, dos shoppings e das fábricas. A maioria do capital humano passa a noite a olhar para a televisão e para os telemóveis, e a desejar outra vida qualquer. Depois, deita-se. Levanta-se cedo e cansado. Com o calor, o capital humano dorme pior.

A mulher do camião

Fiquei surpreendida com os primeiros planos: poderia  Cathy   ser uma versão mais nova da mulher do camião?   A história segue o seu caminho e distancia-se, mas no fim, acho que sim — Cathy está a transformar-se na mulher do camião. Quando fechar os olhos.

‎مشق شب

Logo no início, quando filma os miúdos na rua a caminho da escola, Kiarostami diz a alguém que meteu conversa que o que está a fazer não é bem um filme, é mais um estudo ou uma pesquisa.  Trabalhos de Casa não segue as convenções, é verdade, mas é cinema — totalmente . Kiarostami começa por nos mostrar as técnicas básicas do ofício: iluminação, colocação da câmara, montagem campo-contracampo ( ternamente ). É na cena do pátio, porém, que nos damos conta da força do seu olhar cinematográfico: os rapazinhos são obrigados a entoar cânticos religiosos, mas querem é brincar e aquele ritual transforma-se numa gritaria; a determinada altura, Kiarostami corta o som e então, no silêncio forçado, percebemos o que se passa naquelas escolas ( tragicamente ).

Fogo lento

A admirável poetisa norte-americana Adrienne Rich salientou numa conferência sobre poesia que, «este ano, um relatório da Agência de Estatísticas da Just indica que um em cada 136 habitantes dos Estados Unidos se encontra atrás das grades —muitos em prisões, inculpados». Nessa mesma conferência, citou o poeta grego Yannis Ritsos: Lá fora, a última andorinha demorou-se até mais tarde, suspensa no ar como uma fita preta na manga do Outono, e nada mais ficou. Só as casas queimadas, ardendo ainda em fogo lento. Entretanto , de John Berger. Tradução de Júlio Henriques. Antígona. Outubro 2018.

Organizar o pessimismo

Na própria época - de 1933 a 1940 - em que Walter Benjamin evocava essa possibilidade de «organizar o pessimismo» mediante o recurso a certas imagens ou configurações de pensamento alternativas, a vida quotidiana certamente não o poupava a preocupações. Será que conseguimos imaginar o que era a vida desse judeu alemão «sem recursos», em fuga permanente ante o cerco que se fechava à sua volta? A impressão de Agamben sobre a destruição da experiência da nossa vida quotiana, alegadamente mais «insuportável» do que «em momento algum do passado», deverá, pois, ser ponderada a partir deste contraste. Um contraste ainda mais evidente na medida em que Benjamin soube «organizar o seu pessimismo» com a graça dos pirilampos, procurando, por exemplo, entre o teatro épico de Bertolt Brecht e a deriva urbana dos poetas surrealistas, entre a Biblioteca Nacional e a Passagem dos Panoramas, esse «espaço de imagens» capaz de contradizer a polícia - as terríveis coações - da sua vida. A cotação da exper

E continua

Na página 47:  «Natalie procurava o seu caminho nessa linha de pensamento: arrancar a música da dependência da máquina — mas por máquina ela também entendia a grande orquestra sinfónica e a produção de grandiosas óperas. Mas não pretendia o retorno ao «simplismo» — o cantor popular com banjo e pretensa voz de Kentucky; afirmava que a complexidade é essencial na grande arte, mas que essa complexidade deveria estar na música e não nos meios de a produzir. Disse-lhe que isso me lembrava Einstein, que fez tudo com um lápis e algumas folhas de papel e a sua cabeça, em vez de usar um ciclotrão de cinquenta milhões de dólares; os ciclotrões são muito rigorosos, mas, basicamente, Einstein era ainda mais rigoroso e muito mais barato. Ela gostou da ideia.»

Aproximar as coisas que nunca foram aproximadas

A maior parte das coisas interessantes que leio sobre cinema não foram escritas intencionalmente sobre cinema. Na página 26 de   Tão Longe de Sítio Nenhum , de Ursula K. Le Guin, apanhei um parágrafo que se aplica aos meus filmes preferidos e, mais adiante, uma óptima descrição do trabalho de Godard: De facto, pode dizer-se que a música é um outro modo de pensar, ou talvez pensar seja uma outra forma de música .

Selfie XIX

Às vezes tenho a ilusão tão nítida que sou iraniana, japonesa, turca, romena, argentina, russa, paquistanesa, ucraniana, angolana, finlandesa, coreana, brasileira, nepalesa,…

Tremor

Sala de espera do Centro de Saúde. De repente, a terra treme. Todo o edifício treme. As pessoas olham aterradas umas para as outras. Boca escancarada, olhos esbugalhados, como se tivessem sido surpreendidas por um sismo fatal, longe de casa, longe das pessoas que amam. Depois, o abalo passa. Alguém comenta que são as obras do metro. A máquina avançou mais uns centímetros nas profundezas da terra. Todos se recompõem e agem como se nada tivesse acontecido. Olham de novo para a televisão, para o telemóvel, para o risco na parede branca. Volta a dor na cabeça, a garganta inflamada, a ponta de febre.

Real punk almost in reverse

Se fizesse um filme de ficção (autobiográfico, como convém a quem não sabe fazer filmes? ou uma historiazinha marada de Walser?). Bom, se fizesse um filme de ficção, usava as  The Shaggs  como música diegética («um filme a sério só tem música diegética»). A música seria como a película negra do Chris Marker: uma imagem de alegria sem explicação. Podíamos ver o filme de olhos fechados. Podíamos adormecer.

No século XVI, uma garce era uma rapariga

Helena Tecedeiro: Um exemplo que a Camille dá também é como ao longo dos tempos garce , que eram simplesmente o feminino de garçon  passou a ser pejorativo. Nunca tinha pensado nisso.  Camille Laurens: Julgo que a maioria das pessoas não sabe isso. Porque no século XVI, uma garce  era uma rapariga. E como é que evoluiu? Garçon  nunca foi um insulto, mas garce  tornou-se um insulto, porque o feminino desvaloriza imediatamente. E há toda uma lista de palavras que, no masculino ou no feminino não têm de todo o mesmo significado. Por exemplo coureur  é alguém que corre, coureuse  é uma mulher fácil, que engata homens. Um maître  é um mestre, uma maîtresse  é uma amante. [ Alors, notre objectif dans la langue française est d'être une garce une coureuse une maîtresse. Il faut être trois pour être une. ]