Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens com a etiqueta Paulino Viota

Cheias de graça

Nos seus filmes, Ford não nos fala do oeste real, faz um comentário em segundo grau do mito popular do oeste. Os seus filmes são um mito ao quadrado. Não se trata de converter em mito o Oeste real, mas, partindo de um mito popular, conferir-lhe dignidade estética, por assim dizer; refiná-lo, poli-lo, elevá-lo ao mais alto grau, destilá-lo, o que se quiser; pôr esse mito de andar por casa num pedestal, conseguir  disfrutar dele ao máximo. Talvez a sua atitude não seja muito diferente da dos grandes compositores quando fazem obras a partir do folklore. Ainda para mais tendo em conta que, para Ford, o principal é a música. Para ele, um mito é sobretudo musicalidade. E também arte plástica e poesia, como já assinalamos em relação à «trilogia». Claro que Ford não é um homem da cultura, como esses grandes compositores, mas o que acontece é que quando querem fazer alta cultura com Buffalo Bill, sai um filme de Altman.  Ford é um apaixonado da cultura popular, como têm de ser todos os...
(...) De manhã, no início do 4º acto, Michaleen Oge Flynn interpreta mal a cama partida: « Impetuous! Homeric! ». Já que falámos de mitos, julgo que este comentário, que o cocheiro há-de repetir, é outro sinal de Ford para nos indicar por onde andam os seus interesses. Sean seria então um Ulisses que regressa à sua Ítaca de Innisfree onde encontra uma Penélope respondona e tem de lutar com um cunhado selvagem. Simetrias — os 5 actos nos filmes de John Ford, de Paulino Viota (página 106).

La mirada de John Wayne

Em «Simetrias — os 5 actos nos filmes de John Ford», Paulino Viota elogia os textos de Javier Marías sobre o realizador americano. Como estou sempre na disposição de me desviar do caminho traçado, fui procurá-los. O que Marías escreveu sobre o olhar de John Wayne depois de beijar Maureen O’Hara no cemitério é formidável ( El reino de la posibilidad , El País Semanal, 16 de março de 2014) . Eles estão encharcados pela chuva e colados um ao outro e apaixonados, sim. Mas há uma certa gravidade nos olhos de Wayne — como se tivesse encontrado e perdido não se sabe o quê nesse preciso instante —, qualquer coisa que é quase uma tristeza ( uma tristeza doce , diria Walser). Através desse olhar, percebemos como são complicadas as relações entre homens e mulheres. Como nos filmes Passion , de Godard. Ou em Onde Jaz o teu Sorriso? , quando Danièle (que é uma verdadeira mulher de Ford, como todas queremos ser) diz: Sicilia! ... se nos apaixonámos e nos apeteceu fazer o filme foi po...

Desfile de modelos militares (in paise of Aura Lea)

O que mais me agrada no livro de Paulino Viota sobre John Ford é a forma como ele concilia uma análise estrutural quase científica (método, hipóteses, verificações, etc.) com belíssimas intuições: sim, «podemos ver The Long Gray Line como um desfile de modelos militares ou como um desses livros ilustrados sobre a evolução dos uniformes». John Ford havia de gostar desta descrição simultaneamente directa e esquiva. P.S. O casaco de Marty ainda tem a etiqueta da loja.

Cinema «experimental»

«Ford foi temerário e na velhice atreveu-se a ir mais longe do que nunca. Embora em termos de cinema «experimental», como diria Straub, se possa pensar em The Long Gray Line , que Straub menciona, ou em Two Rode Together ou Donovan’s Reef , julgo que o contraste tremendamente «monstruoso» de Cheyenne Autumn é a coisa mais radical que Ford fez. Aquilo que é mais sério, mais profundo, no filme é o grotesco. Depois da barbárie do texano a matar um índio pelo puro prazer de o fazer, pela curiosidade de saber o que se sente, a indiferença, a estupidez, dos habitantes de Dodge City (cidadãos de pleno direito, civis; Ford não teria sido tão cruel se fossem militares) é o comentário mais sombrio sobre as relações dos americanos com os índios que já vi no cinema. E o facto da cena ser uma palhaçada ainda torna os brancos mais idiotas e faz com que a sua monstruosidade seja muito mais dolorosa.»  Simetrias — os 5 actos nos filmes de John Ford, de Paulino Viota (página 29). (É a primeira ve...

Sonho com um congresso de neurologistas e críticos de cinema

Paulino Viota : O mais interessante para o estudo das artes (por exemplo, do cinema; digamos do cinema) seria algo de que não sei nada mas gostaria de saber: o estudo do cérebro; ou seja, a neurociência. Sonho com um congresso de neurologistas e críticos de cinema. Não, críticos não: analistas de cinema como eu, Tag Gallagher ou Raymond Bellour: pessoas que se deram ao trabalho de analisar filmes; que não são assim tantos, porque muitos críticos de cinema geniais, como foi Serge Daney, continuam a trabalhar a partir do seu gosto subjectivo.

A Barcelona

Retrospectiva i cartablanca a Paulino Viota:   Las ferias,  José Luis,   Tiempo de busca, Fin de un invierno,  Duración, Contactos,  Con uñas y dientes,  Cuerpo a cuerpo,  (P. Viota) Der Bräutigam, die Komödiantin und der Zuhälter  (Danièlle Huillet i Jean-Marie Straub) Staroie i novoe (S. Eisenstein) Hatari! (Howard Hawks) The Sun Shines Bright (John Ford) Roma (F. Fellini) Bande à part (Jean-Luc Godard)

Três em linha

O elemento que faltava

Alberto Pagán: As representações em Contactos são muito recitativas, frias e anti-psicológicas. Isso deveu-se a limitações das filmagens ou foi uma estética brechtiana intencional?  Paulino Viota: Acho que faz parte do estilo. Num esquema de tempos mortos e rupturas, se tentássemos uma interpretação mais natural, mais directa, provavelmente teria ficado demasiado desajustada com o estilo da câmara. Pensei que era mais coerente assim, uma espécie de teatralização, num sentido de ascetismo, claro; não no sentido de multiplicar a expressão, mas precisamente ao contrário. É a ideia de conter a expressão, de não expressar. Acho que provavelmente já tínhamos visto algum filme de [Robert] Bresson [A TVE passou Pickpocket ( O carteirista , 1959) a 2-12-1967 e Les anges du péché ( Os anjos do pecado , 1943) a 23-03-1970] e tínhamos visto, de certeza, a Crónica de Anna Magdalena Bach [ Cronik der Anna Magdalena Bach,  1967] de [Jean-Marie] Straub [e Danièle Huillet; transmitida pe...

Um filme perverso

(...) Contactos é outra coisa, é o que na altura se chamava cinema de vanguarda, uma verdadeira experiência. Podemos considerá-lo próximo desse movimento, pois é um artefacto de reflexão cinematográfica; reflexão sobre o espaço e o tempo em oposição ao que se fazia no cinema que conseguíamos ver. Quando filmámos  Contactos,  em 1970, o cinema tinha uns setenta anos e já desenvolvera técnicas prodigiosas para contar histórias e utilizar o espaço e o tempo em função dos interesses dessas histórias (os tempos devem ser abreviados, os espaços trabalhados de determinada maneira, prescinde-se de todos os momentos que não têm interesse…). Contactos foi feito contra tudo isso. Uns anos depois, li um texto de Eisenstein em que ele dizia que, embora o sistema fosse outro, A Greve ( Stachka , Sergei M. Eisenstein, 1925) tinha sido feito totalmente do contra. Então, de forma modesta, fizemos o mesmo em Contactos ; quer dizer, tudo o que não se podia fazer, tudo o que era proibido, nós ...

Quosque Tandem…! (Modelo de leitura B)

Contactos. Maio de 1970. O título do filme é, por si só, uma estrutura polissémica. Tem a ver com o processo de impressão directa dos negativos fotográficos em que dois corpos em bruto se tocam, mas também pode ser alguém infiltrado dentro de um grupo político, a secção de classificados dos jornais, ou até uma composição de Karlheinz Stockhausen .  Contactos deve ser visto junto com Duración . Não só por serem os filmes mais radicais de Paulino Viota, mas também porque há uma ligação entre eles que torna a projecção conjunta mais arrojada, tipo 1+1=11. O tempo em Duración e o espaço em Contactos  (que, perante os nossos olhos contemplativos, se converte em tempo) são simultaneamente formas puras da intuição a partir das quais é possível começar a perceber o mundo que nos rodeia, mas também matéria cinematográfica que nos permite compreender (principalmente no sentido de abranger) o cinema. Kant e Marx em contraponto. Avante! Quando Paulino Viota diz que  Contactos f...

Ver e não ver (outros exemplos)

Vertigo é não só a história de um homem que se apaixona por uma quimera, mas também de um homem incapaz de ver a mulher real, próxima, calorosa, enamorada, abnegada, compreensiva, inteligente que tem à sua frente.  Paulino Viota, A herança do cinema.

Três em linha

Em 1772, Diderot escreveu Isto não é um conto 1 (com Madame de Carlière e Suplemento à viagem de Bougainville ,  forma um tríptico de contos morais — quase dois séculos antes de Rohmer). No segundo conto (ah, afinal são contos), Diderot narra a história de Gardeil e da Menina de la Chaux. Por amor a Gardeil, de la Chaux larga honra, fortuna e família. A vida deles não é fácil. De la Chaux aprende grego, hebraico, italiano e inglês para ajudar o amante nas traduções. Mas um dia, sem nenhuma justificação, Gardeil abandona-a. Diderot conclui o conto dizendo que é um pouco precipitado julgar alguém por um único traço de carácter, mas que há muita verdade nas generalidades.  Em 1974, Paulino adapta a história, mas troca o título. Por influência de Baltasar Gracián , o filme chama-se  Jaula de Todos . Em 2018, Pablo García Canga filma De l’amitié , baseado num fragmento de Isto não é um conto (1772) de Denis Diderot e Jaula de todos (1974) de Paulino Viota. 1. Há uma tradu...

O peido de rã (outra vez)

Durante quatro anos (entre 1971 e a morte de Franco), Paulino Viota e o seu primo Javier Vega (trabalharam juntos em José Luís , Fim de um inverno , Contactos  e Com unhas e dentes ) tentaram fazer um filme explicitamente político inspirado nas peças didáticas de Bertolt Brecht, mas não conseguiram dinheiro. O argumento foi considerado primeiro demasiado vanguardista, depois demasiado didáctico. Conforme iam trabalhando o argumento e a abordagem cinematográfica, também mudavam os títulos: ...E o ouro dos seus corpos , Táctica , Os explorados falam de exploração , ou O mar não é surdo . Nota: mais um (entre outros) para a  lista de Henri Lefebvre.

Un hermano de Jean Renoir

Creio que foi no último jantar na cantina do Centro de Negócios do Fundão, em conversa com a Carlota e o Rodrigo, queixei-me um bocado do lado sorumbático do cinema e disse que precisávamos de mais tipos como Jean Renoir — com um olhar amplo e alegria luminosa.  Agora que comecei a ler La Família del Cine , dou-me conta que Paulino é um desses homens. Apesar de ter sido obrigado a desistir de filmar por falta de apoios, encontrou um desvio e exerce, desde os anos oitenta, a sua actividade cinematográfica no ensino e na crítica sem rancores e com uma inteligência imensa e bem humorada. Para além de contemporâneo de Griffith, Paulino Viota é um irmão de Jean Renoir.

A sua parte remelosa

Ela, Tina (a personagem), Guadalupe G. Güemes (a atriz), está a fechar a porta de um armário. Quando a porta fecha, não se ouve nada. A sequência é muda. Silenciosa. É um filme feito com recursos de amadores, na segunda metade dos anos sessenta. Para um realizador dessa época, o som era um problema. Dificuldade do som directo ou do som pós-sincronizado. Neste filme há vários tipos de som e é ao realizador que cabe escolher um deles. Não podem coexistir. Há momentos de diálogo, em que ouvimos vozes. Há momentos em que ouvimos som ambiente, por exemplo, sons da rua. Há momentos em que ouvimos música. E depois há momentos em que não ouvimos nada. Quando o namorado da Tina espera impacientemente por um amigo na rua, por exemplo. E esta sequência quotidiana da Tina e do namorado depois de, pressentimos, terem passado a noite juntos, a levantarem-se, a lavarem-se, a vestirem-se, enquanto a câmara os acompanha, livre e íntima. Pode-se pensar, claro, que se não há som é por falta de meios. Ma...

Códigos & Fluxos

Os Encontros de Cinema do Fundão são muito acolhedores: permitem ver filmes raros, discutir ideias vagas, estabelecer diálogos inesperados, e por aí fora. Ouvir Paulino Viota , por exemplo, foi uma descoberta tão maravilhosa que vou tentar prolongar o efeito inebriante recorrendo a actividades paralelas.  Mas o que mais me impressionou não foi de ordem cinematográfica (lá estou eu a falhar o degrau outra vez): para além de compreender materialmente o que é o calor do verão no interior e o ritmo de uma terra pequena, depois de algumas investigações percebi que se vivesse no Fundão o mais certo era ter votado no candidato do PSD nas últimas autárquicas — um gesto que me é completamente alheio.  É como se a dupla do vidro da montra (loira, sofisticada, e talvez com um  tailleur  cinzento?) se afastasse de mim e virasse à direita.