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Aprender a ter medo

A partir de uma certa idade, passamos a vida a fazer rastreios. Como se houvesse uma coisa má dentro de nós. Ou pior ainda: nem uma dúvida quanto à sua existência apenas não sabemos onde se esconde — como no filme Tubarão . Também é para isso que existe o cinema, para aprendermos a ter medo.  ( take 2 )  Tenho dentro da cabeça muitas frases e ideias de Jorge Silva Melo sobre Pavese, Renoir, Kleist, Tati, Bohumil Hrabral, etc. etc. Por exemplo, foi com ele que aprendi a ligar o medo do Tubarão a Harold Pinter: Sim, ficaremos em minha casa, fechadinhos como o capitão na Cabina do "Tubarão" de Spielberg, com o perigo lá fora (tão pinteriana essa parte do filme...)

Ihr habet allezeit Arme bei euch

Na Paixão Segundo São Mateus há uma cena em que os discípulos ficam indignados por uma mulher derramar bálsamos valiosos sobre a cabeça de Jesus. Alegam que é um desperdício; podiam vendê-los e dar o dinheiro aos pobres. Jesus defende a mulher e diz: Ihr habet allezeit Arme bei euch, mich aber habt ihr nicht allezeit (pode traduzir-se assim: tereis sempre pobres, mas a mim nem sempre me tereis). Parei aqui porque me pareceu que esta intervenção mostrava um traço de orgulho (é para estes atalhos que nos empurram as leituras de Cioran). Mas passado um bocado começou a emergir outra revelação, talvez até mais perigosa. Na primeira parte da frase, nessa imagem de uma pobreza perpétua ( allezeit , que se pode traduzir por “sempre”, é a justaposição das palavras “todo” e “tempo”), percebi que no fundo, no fundo do fundo se for preciso forçar o afastamento, este Jesus é um céptico. 

Publicidade

Leio no jornal que as autoridades russas apresentaram um novo míssil nuclear intercontinental: o RS-28 Sarmat . Este novo produto da tecnologia russa, construído exclusivamente com «componentes e peças de fabrico nacional», é uma arma com «elevadas características tácticas e técnicas», «verdadeiramente única», «de quinta geração», «invencível», «hipersónica», capaz de voar «a uma velocidade de cerca de 25.560 quilómetros por hora», «sem limites em termos de alcance», com capacidade para «atingir alvos atravessando tanto o Pólo Norte como o Pólo Sul» e «destruir uma área semelhante a França». A notícia, como é óbvio, não impressiona pelas «características tácticas e técnicas» do novo míssil — num conflito nuclear, é irrelevante se a bomba é «hipersónica» ou apresenta sinais de ferrugem. A notícia impressiona pela linguagem. São as mesmas palavras e o mesmo tom da publicidade. Os mesmos truques dos tipos que apresentam «produtos inovadores» nas grandes feiras internacionais, na Web Summ

Atalhos ou desvios?

“Sonho com um sistema filosófico formulado com atalhos à la Emily Dickinson.” Nesta nota de Cioran, hesitei muito entre atalhos e desvios. Os especialistas de Emily Dickinson usam, muitas vezes e em múltiplos aspectos, “desvio”. É uma palavra eficaz, não nego; é evidente que corresponde bem a deviation (quase o efeito espelho, sonho de todos os tradutores); e talvez se aplique na perfeição a alguém que não segue o caminho habitual. Nos seus Cadernos , em relação a Emily Dickinson mas principalmente a si próprio, Cioran usa a palavra francesa raccourci . É ampla e afiada: serve para atalho e também para resumo, coisa abreviada ou elíptica — parece que tem no seu interior uma acção de corte abrupto (cesura?). Apesar de em português “atalho” não segurar o sentido breve e preciso de “súmula”, consegue ainda assim dar uma boa imagem do método de trabalho da poeta americana. Atalho é uma vereda, um caminho secundário que permite encurtar a distância e chegar mais rapidamente,  enquanto de

Atalhos à la Emily Dickinson

Emily Dickinson: I felt a funeral in my brain (Senti um funeral no meu cérebro), podia acrescentar como Madame de Lespinasse “em todos os momentos da minha vida”. Funerais perpétuos do espírito.  Há meses que vivo todos os momentos de angústia na companhia de Emily Dickinson.  Trocava todos os poetas por Emily Dickinson.  Desde o meu antigo entusiasmo (agora já ultrapassado) por Rilke, nunca me apeguei tanto a um poeta como a Emily Dickinson. O seu mundo, que me é familiar, sê-lo-ia ainda mais se tivesse a audácia e a energia de me consagrar completamente à solidão. Mas falhei demasiadas vezes, por covardia, frivolidade ou talvez medo. Esquivei-me a mais de um abismo, por cálculo e instinto de preservação. Pois falta-me coragem para ser poeta. É por ter pensado demasiado nos meus gritos? Os raciocínios fizeram-me perder o melhor de mim mesmo.  Deus, “o nosso velho vizinho”, como lhe chama Emily Dickinson.  Yeats — depois de Emily Dickinson, podia acreditar que viria a amar um outro po

Borboletas

Uma cena de L’Espoir , de André Malraux e Boris Peskine: uma colecção de borboletas presas com alfinetes no interior de uma moldura. A moldura está pendurada na parede de uma escola primária ocupada por republicanos, numa aldeia da Catalunha. As borboletas soltam-se com o impacto das bombas falangistas. Despenham-se, de asas muito abertas, como aviões minúsculos, no fundo da moldura. Morrem uma segunda vez. Nenhum céu é seguro para as borboletas.

Dinheiro

8h40. Apesar da hora e de ameaçar chuva, o Jardim do Morro está repleto de turistas. Uma mulher comenta em voz alta para toda a gente na carruagem do metro ouvir: — Olha os turistas! Um ror deles… E ainda dizem que não há dinheiro. Não há é na minha carteira.

Desvios

«A poesia de Dickinson é marcada por uma peculiar gramaticalidade: inserção forçada de plurais, posições sintácticas invertidas, ou, muitas vezes, desrespeito pelos géneros, pelas pessoas ou pelas concordâncias verbais. É ainda necessário destacar da linguagem de Dickinson não só os desvios sintáctico-formais, mas ainda os desvios semânticos internos, aqueles que sustentam, pela ruptura, a arquitectura dos seus textos poéticos e que resultam numa linguagem críptica, compacta, plena de elipses, traduzida em textos que desafiam a tradição da poesia enquanto comunicação e oferecem à linguagem literária um lugar de destaque e autonomia mais próximo da estética que informa a poesia moderna. Excessiva, em relação ao seu tempo; excessiva, mesmo em relação ao nosso, pela opacidade de leitura e apreensão e pelas temáticas envolvidas. “Uma linguagem altamente desviante que arrisca tudo”, como defende David Porter, pois, “na extrema elipse e transposição, desbasta a própria armadura do sentido”.»

Uma mulher sob influência

Acordei com uma sensação física de perigo: a boca cheia de sangue. Impressão falsa. Voltei a adormecer, retomei à mesma cena. Vi o interior da minha boca num espelho; já não havia sangue, era uma estrutura enorme — parecia uma catedral destruída.  Não sei se os coleccionadores de arte conseguem a proeza de ter sonhos influenciados por Francis Bacon.

Êxodos

25 de março (1967) Véspera de Páscoa. Paris esvazia-se. Este silêncio tão inabitual como em pleno verão. Que felizes devem ter sido as pessoas antes da era industrial! Oh, nada disso. Ignoravam completamente a sua felicidade, como nós ignoramos a nossa. Bastar-nos-ia imaginar o ano 2000 em detalhe para ter, por contraste, a sensação de estar ainda no Paraíso.  (Abril de 1964) Fui à estação de Montparnasse esperar S. Fim das férias da Páscoa. Uma multidão considerável, como no tempo das revoluções ou doutros grandes infortúnios colectivos. Fechei os olhos, mergulhado na repugnância e no delírio. Esta multidão hedionda tem o dom de me pôr fora de mim — num sentido ao mesmo tempo odioso e poético. Sair deste mundo, é a isso que ela convida e constrange. O afastamento no meio da turba — um arroubo místico quando tudo fervilha em nosso redor. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Paciência revolucionária

Em Exercícios de Admiração , no texto dedicado a Joseph de Maistre ( ensaio sobre o pensamento reacionário ), Cioran termina um parágrafo assim (com parêntesis e tudo):  (Consegue-se imaginar uma revolução a sacar slogans de Pascal?) É uma boa pergunta. Se lermos devagar, percebemos que é mais do que isso; Cioran propõe um revigorante exercício intelectual. Pode-se praticar em casa — em casa de Maud, por exemplo.

As mãos

Um detalhe repetido mil vezes em Conto de Verão , de Éric Rohmer: os movimentos nervosos das mãos de Gaspard. Ele não sabe o que fazer com as mãos. Parece querer escondê-las ou apagá-las a todo o custo, como se o resto do corpo quisesse ver-se livre daqueles trambolhos, que atrapalham e que arrasta consigo contra a vontade. Eu sei que é um truque simples para dizer, sem palavras, que Gaspard é um jovem inseguro. Mas não é só isso. Tenho mais do dobro da idade do personagem e reconheço em mim os mesmos gestos. Um velho operário talvez diria que são os gestos de alguém que nunca trabalhou numa linha de produção. Talvez o marinheiro do filme dissesse uma coisa parecida: são as mãos de alguém que nunca precisou de içar velas ou lançar as redes em alto mar.

Número zero

O livro é mais dos flops do que meu : eles é que tiveram, têm, a perseverança (uma espécie de fé?); o trabalho de desbastar os textos e dar-lhes um aspecto belo entre monólito e túnel (ainda por cima, o Luís caprichou num “C” que parece quase um zero — e o que eu gosto da palavra quase e do número zero ).  O último texto foi escrito há oito anos, mas parece-me que foi há oitenta tão distante me encontro dessa c. que se entusiasmava mais do que necessário com os filmes. É uma espécie de livro póstumo, mas também é verdade, como me explicou a Alexandra , que todos os livros são póstumos. Voilá, c' est fini — o negro fica-lhe bem. 

Proposta de alteração dos vínculos narrativos

Dada a incontestável importância dos intestinos na nossa vida e até as suas conexões ao cérebro, talvez já fosse altura dos empresários trocarem a estafada metáfora do ADN. A minha proposta é que comecem a falar da merda que as empresas fazem — de preferência sem afectações (sem vocabulário em inglês, sem a palavra colaborador, etc., etc.).

Conjugação favorável

Uma criança recostada num carrinho a roer uma bolacha — é a imagem máxima de segurança. O carro que nos protege (do frio, da chuva, do mundo) e retira o peso, a proximidade dos pais, a comida. A partir daí é sempre a descer — nunca mais teremos esta conjugação favorável.

Branco e preto

Estava a subir as escadas rolantes do metro do Campo 24 de Agosto, talvez demasiado cansada para pensar, quando percebi que “sim” corresponde ao branco da neve de Walser e “não” corresponde ao negro da Branca de Neve de João César Monteiro. Traduções exactas cada uma delas. A mesma origem, caminhos diametralmente opostos e, no entanto, são — continuam a ser — as duas a mesma coisa.  Também no mundo das cores e das palavras vigora o princípio da incerteza.

O que se mostra e o que se esconde

Uma cena de Il Cristo Proibito , de Curzio Malaparte. O cenário é uma farmácia numa aldeia da Toscana, poucos anos após o fim da segunda guerra. Pendurado na parede da loja, à vista de todos, um retrato de Estaline. O velho farmacêutico lança-lhe um olhar de esguelha, meio indiferente. Depois, avança para uma sala interior, na zona privada da loja. Abre um armário. Na porta, escondido pelo lado de dentro, há um retrato de Mussolini. O farmacêutico ergue-se, solene, diante do retrato. Faz a saudação romana. Volta a fechar o armário.

E que futuro

Visão de desabamentos. É nisto que vivo de manhã à noite. Tenho todas as enfermidades de um profeta, não os dons.  E, no entanto, sei — com um saber impetuoso, irresistível — que possuo senão luzes, em todo caso lampejos sobre o futuro. E que futuro, Deus do céu!  Sinto-me contemporâneo de todos os pavores futuros.  A minha grande predilecção pelos naufrágios. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972