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Atalhos ou desvios?

“Sonho com um sistema filosófico formulado com atalhos à la Emily Dickinson.”

Nesta nota de Cioran, hesitei muito entre atalhos e desvios. Os especialistas de Emily Dickinson usam, muitas vezes e em múltiplos aspectos, “desvio”. É uma palavra eficaz, não nego; é evidente que corresponde bem a deviation (quase o efeito espelho, sonho de todos os tradutores); e talvez se aplique na perfeição a alguém que não segue o caminho habitual.

Nos seus Cadernos, em relação a Emily Dickinson mas principalmente a si próprio, Cioran usa a palavra francesa raccourci. É ampla e afiada: serve para atalho e também para resumo, coisa abreviada ou elíptica — parece que tem no seu interior uma acção de corte abrupto (cesura?). Apesar de em português “atalho” não segurar o sentido breve e preciso de “súmula”, consegue ainda assim dar uma boa imagem do método de trabalho da poeta americana. Atalho é uma vereda, um caminho secundário que permite encurtar a distância e chegar mais rapidamente, enquanto desvio implica uma volta maior, possivelmente com curvas e contracurvas, para chegar ao destino. Por esta via mais próxima do movimento dos corpos que dos dicionários, prefiro atalho. Permite-me pensar que Emily Dickinson é uma mulher que corta caminho, que se mete por canadas estreitas.

— Para chegar onde?

A pergunta está mal feita, o verbo não é chegar.

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