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Mensagens

«Vamos arrancar-vos o coração»

Sempre que volto a ver um filme de John Ford, fico presa. Já conheço as personagens, os actores, as paisagens — é tudo familiar e essa proximidade leva-me a perceber melhor as razões (ou contradições?) de cada um e a  profundidade de campo da história . No caso d’ O homem que matou Liberty Valance (1962) , há um traço que divide os territórios de Tom Doniphon e de Ransom Stoddard. Ambos desejam mais ou menos o mesmo, mas um acredita que a justiça é uma coisa pessoal que passa pela defesa armada rápida (ou ataque, se for caso disso) e o outro acredita na protecção da lei (e dos livros) para todos. Um representa o passado; e o outro, o futuro de uma república democrática fundada sobre uma Constituição cujo preâmbulo abre com as palavras «nós, o povo». Ora nem mais, o povo. O filme começa com Doniphon dentro de um caixão simples e barato, sem pistolas nem botas, um tipo que não tem onde cair morto está para ali à espera de voltar à terra a que sempre pertenceu. Stoddard, pelo contrário, é

Um pouco

O amor de Ethan e Martha é dos mais velados da história do cinema. Não sabemos o que aconteceu entre eles. Há alguns indícios: gestos, olhares, silêncios — mas não passam de subentendidos. Apenas podemos tentar adivinhar. A pista mais evidente é também a mais difícil de reconhecer porque não incide sobre nenhum dos dois; trata-se da recriação do que se passou há muitos anos, só que agora as coisas entre Martin Pawley e Laurie Jorgensen são ligeiramente diferentes. Ford mudou um pouco a expressão , como se faz na música.
(Talvez o laço mais forte entre os filmes de Pedro Costa e John Ford seja uma tremenda habilidade dos actores para falarem com os mortos.)

Think back, Pilgrim!

Vou finalmente acabar de o texto sobre O Homem que Matou Liberty Valance . Já tinha definido a linha condutora, mas estava parado há quase um ano. Sabia que era um texto composto por apenas três segmentos — mas não sabia bem porquê. Ou como? Só hoje de manhã, ao sair do metro e caminhar à chuva e molhar-me toda é que compreendi a minha ideia. É sombria.

Sonho com um congresso de neurologistas e críticos de cinema

Paulino Viota : O mais interessante para o estudo das artes (por exemplo, do cinema; digamos do cinema) seria algo de que não sei nada mas gostaria de saber: o estudo do cérebro; ou seja, a neurociência. Sonho com um congresso de neurologistas e críticos de cinema. Não, críticos não: analistas de cinema como eu, Tag Gallagher ou Raymond Bellour: pessoas que se deram ao trabalho de analisar filmes; que não são assim tantos, porque muitos críticos de cinema geniais, como foi Serge Daney, continuam a trabalhar a partir do seu gosto subjectivo.

Não!

Quando telefonamos à cantora de ópera Agnes Baltsa, porque num lugar qualquer do mundo alguém precisa de uma Carmen, ela mete-se num avião com os seus três figurinos, um para o primeiro acto, outro para o segundo acto e outro para o terceiro acto. E lá está ela com os seus três figurinos, num qualquer teatro de ópera, lá está ela com os seus três figurinos, sempre os mesmos. E eu diria: Mas isso é um Não! Só que ninguém ouve este «Não»! Duas mil pessoas para ali sentadas e a pensar que estão diante de uma diva extravagante que não bate bem e ninguém ouve este Não. Vêem a ausência absoluta de criatividade de Agnes Baltsa mas não vêem nisso um Não! René Pollesch,  O amor é mais frio que o capital . Tradução de José Maria Vieira Mendes.

A Barcelona

Retrospectiva i cartablanca a Paulino Viota:   Las ferias,  José Luis,   Tiempo de busca, Fin de un invierno,  Duración, Contactos,  Con uñas y dientes,  Cuerpo a cuerpo,  (P. Viota) Der Bräutigam, die Komödiantin und der Zuhälter  (Danièlle Huillet i Jean-Marie Straub) Staroie i novoe (S. Eisenstein) Hatari! (Howard Hawks) The Sun Shines Bright (John Ford) Roma (F. Fellini) Bande à part (Jean-Luc Godard)

Limpar o campo

A minha mãe diz-me, por telefone, que as figueiras também arderam. É muito triste, mas é a vida, diz ela. Já morreram pessoas e outras ficaram sem casa, e isso, sim, é uma tragédia. Se tivermos força, acrescenta, vamos limpar o campo e plantar outras. Serão precisos vários anos até aparecerem novos figos. Ainda seremos nós a colhê-los? E serão tão doces como estes que o fogo devorou?

Música concreta

Às vezes tenho vontade de mexer no som de certos filmes, tirar-lhes a música que me parece a mais, substituí-la por sons. Em  Paris s’en va , em vez Piazolla (que me irrita), preferia: o movimento dos carros, uma campainha, passos, alguém a correr, ruídos de obras, umas frases que ficam no ar, talvez o rugido de um leão.

O pensamento mágico do capitalismo

O abismo cognitivo foi instalado quando todos nós vimos que as coisas podem ser reproduzidas em série e que a caixinha do leite ou qualquer outro produto que está na gôndola do supermercado, aquela coisa apareceu ali (…) e não importa mais o processo. Então a caixinha de leite e toda essa facilidade da gôndola seriam coisas que aparecem na sua cara e você pode simplesmente consumir. É isso que o Davi Kopenawa Yanomami, nessa sua prospecção do mundo do branco que ele olha de dentro da floresta, dirá que é o ‘mundo da mercadoria’. Vamos imaginar que esse mundo da mercadoria é mágico. Ele faz aparecer água na torneira, leite na caixinha e coisas na gôndola. Quer dizer, é um pensamento mágico o desse mundo subalterno à ordem capitalista. É tão mágico quanto o pensamento de um xamã. O pensamento mágico de um escravo do capitalismo é tão fantástico que ele acredita que o capitalismo pode acabar com o mundo e criar outro. Eu me pergunto: por que um cara vai financiar o envio de um foguete par

Não cancelar

Desde que me apercebi do botão que permite anular o envio de um email, sinto sempre um pequeno arrepio quando os deixo seguir o seu caminho — um pouco pela tentação de voltar atrás, de apagar os disparates, mas principalmente pelo desejo de não o fazer. A possibilidade de cancelar, torna qualquer envio trivial num acto um bocado perverso.

Dois continentes a rir

Alan Schneider, na sua autobiografia, Entrances , descreve a catástrofe que ocorreu quando, na primeira encenação em solo americano de À Espera de Godot , os espectadores acorreram à sala, esperando ver Bert Lahr numa comédia burlesca tradicional (expectativa esta encorajada pela respectiva campanha publicitária, que anunciou a obra como «uma peça que pôs dois continentes a rir a bandeiras despregadas»), e acabaram irritados e confusos ao perceberem que a experiência não se enquadrava nas suas expectativas. Marvin Carlson, Palco Assombrado . Tradução de Paulo Faria.

Sete mãos esquerdas

Fomos ver a companhia de Trajal Harrell dançar ao som do Concerto de Colónia, de Keith Jarrett. Em casa, depois do espectáculo, leio no jornal que o pianista sofreu um AVC em 2018 e que tem a mão esquerda paralisada. Já não consigo pensar senão nas mãos dos sete bailarinos a desenharem aqueles acordes no ar. Belos e pungentes. Um bailado para sete mãos esquerdas.

Eu também já tinha reparado nisto

Há aquela anedota sobre os amigos de Jane Austen que evitavam falar na presença dela por medo de irem parar a um livro. Não sei exatamente como é que a poesia e a ficção funcionam, mas parte da questão é que nós reparamos em muito mais do que julgamos reparar. Uma das particularidades da ficção não é tanto fazer o papel de observador em benefício dos outros, mas despertar nos leitores a consciência das suas próprias capacidades de observação. Por isso, enquanto leitor, muitas das descrições ou das digressões que me interessam não são as que me parecem inteiramente novas, mas as que envolvem aquele inquietante “Meu Deus, eu também já tinha reparado nisto, mas nunca me dei ao trabalho de o pôr em palavras”. David Foster Wallace numa conversa com Mark Shechner.

Par les champs et par les grèves

Nantes Uma cerveja, ao fim da tarde, num bar chamado Corneille, que fica nas traseiras do edifício da Ópera. Copo pequeno, bebida vulgar. A mais barata da lista. Nem drama, nem comédia. Noirmoutier-en-l'Île Uma hora e tal pelos campos entre Nantes e Noirmoutier-en-l'Île, a pequena povoação balnear onde se rodaram várias sequências de As Praias de Agnès . O mar é um grande lago de águas paradas. O areal está coberto por conchas de ostras. Milhões de pequenas peças de mármore branco e cinzento esculpidas por um dadaísta enlouquecido. Saint-Marc-sur-Mer Foi aqui que Monsieur Hulot fez férias em 1953. E daqui não mais saiu. Está por toda a parte: nos nomes das ruas, nos logotipos das lojas, nos menus dos restaurantes. A praia chama-se agora «Plage de Monsieur Hulot» e o hotel da rodagem, comprado há uns anos por uma cadeia internacional, tem a personagem de Tati pintada numa das empenas. A praia é de areia escura. Borboletas da couve adejam no ar como flocos de espuma branca. Ao lo

Três em linha

Selfie XXI

Devia ter 3 ou 4 anos. Vivíamos com os avós maternos. No Natal, o meu avô deu-me cinquenta escudos; ao meu irmão deu cem. Achei a diferença injusta e devolvi-lhe o dinheiro. Foi o meu primeiro acto político.

Ban, Ban, Calibã!

O título, Calibã e a Bruxa , inspirado na peça A Tempestade , de Shakespeare, reflete esse esforço. Na minha interpretação, no entanto, Calibã não apenas representa o rebelde anticolonial cuja luta ressoa na literatura caribenha contemporânea, mas também é um símbolo para o proletariado mundial e, mais especificamente, para o corpo proletário como terreno e instrumento de resistência à lógica do capitalismo. Mais importante ainda, a figura da bruxa, que em A Tempestade fica relegada a segundo plano, neste livro situa-se no centro da cena, enquanto encarnação de um mundo de sujeitos femininos que o capitalismo precisou destruir: a herege, a curandeira, a esposa desobediente, a mulher que ousa viver só, a mulher obeah que envenenava a comida do senhor e incitava os escravos à rebelião.  Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici.