Sempre que volto a ver um filme de John Ford, fico presa. Já conheço as personagens, os actores, as paisagens — é tudo familiar e essa proximidade leva-me a perceber melhor as razões (ou contradições?) de cada um e a profundidade de campo da história. No caso d’O homem que matou Liberty Valance (1962), há um traço que divide os territórios de Tom Doniphon e de Ransom Stoddard. Ambos desejam mais ou menos o mesmo, mas um acredita que a justiça é uma coisa pessoal que passa pela defesa armada rápida (ou ataque, se for caso disso) e o outro acredita na protecção da lei (e dos livros) para todos. Um representa o passado; e o outro, o futuro de uma república democrática fundada sobre uma Constituição cujo preâmbulo abre com as palavras «nós, o povo».
Ora nem mais, o povo. O filme começa com Doniphon dentro de um caixão simples e barato, sem pistolas nem botas, um tipo que não tem onde cair morto está para ali à espera de voltar à terra a que sempre pertenceu. Stoddard, pelo contrário, é um político importante e vive numa cidade grande. Veio ao funeral por uma questão de dever e por causa da mulher, pois Hallie nunca se esqueceu de Tom e das flores dos cactos (ninguém se esquece dos amores que não vingam). Instado pelos jornalistas, o velho senador vai contar pela primeira vez a história que não foi escrita, que se perdeu nas margens e deixou de fora um homem solitário e pessimista — isto é, que não conseguiu engendrar uma outra forma de viver.
O homem que matou Liberty Valance é austero e triste. É como se John Ford, em vez de filmar a glória, a paisagem aberta e vibrante, os mitos da fundação dos EUA, como tantas vezes fez, quisesse aos 68 anos, mostrar o outro lado, o que ficou por dizer, o que cresceu na sombra, o veneno. Rodado quase todo em estúdio e a preto e branco, o filme é de uma coesão a toda a prova: os planos são todos indispensáveis e densos; é tudo tão concentrado que fere. Vou deter-me em duas cenas que mostram bem porque é que um dia estes filmes hão de estar onde merecem, junto às peças de Shakespeare, mostrando as infinitas trevas nas almas dos homens.
A primeira cena é uma aula. Ransom decide ensinar Hallie a ler, mas rapidamente juntam-se uma data de miúdos hispânicos e Nora e o marido, que são imigrantes suecos, e Pompey que é Woody Strode e em 1960 foi o Sargento Rutledge e de repente já é uma turma inteira de gente que não tem quase nada mas a quem por direito imanente podemos chamar povo. Há duas imagens na parede de George Washington e Abraham Lincoln e no quadro negro está escrito: «a educação é a base da lei e da ordem» — um sonho, em política diz-se utopia. Do abecedário que as crianças recitam passa-se para disciplinas políticas e Ransom fala do país e da forma como é governado. Nora diz com orgulho que os EUA são uma república onde as pessoas mandam através dos representantes eleitos. Pompey levanta-se para afirmar, ainda titubeando, que a lei básica dos Estados Unidos se chama Constituição e começa assim: «Consideramos estas verdades evidentes: todos os homens nascem iguais» — caramba, estas palavras foram escritas para ele as dizer de pé! E a seguir Ransom lê um excerto de um texto notável de Dutton Peabody, o editor do jornal Shinbone Star, sobre a importância das eleições e dos votos, sobre a necessidade dos pequenos proprietários, lojistas e todos os que estão desprotegidos na vida se unirem e apoiarem um representante forte que os defenda dos interesses gananciosos dos grandes criadores de gado — é isto a democracia. John Wayne interrompe a aula, diz que o editorial está muito bem escrito, mas por causa dele Liberty Valance anda a angariar mercenários a mando dos rancheiros para assustar e condicionar as eleições e que devem ir todos para casa porque vai haver sangue nas ruas. Ransom acusa-o de entender apenas a lei da violência e, no fundo, de pactuar com o infame pistoleiro. Saem todos, ele apaga a frase do quadro negro e volta para o restaurante e para o avental de lavar pratos.
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Depois tudo se desenrola muito rapidamente: Ransom é eleito para representar Shinbone na convenção estadual (as eleições decorrem no saloon com bar fechado); Liberty Valance é morto; Tom chega demasiado tarde a Hallie e reduz-se a partir daí a uma sombra condenada a vaguear por entre os ventos. E chegamos à tal convenção em Capitol City, é nesta outra cena que me quero deter mais um pouco.
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A comitiva de Shinbone entra na sala e percebe-se que a política está em rápido processo de profissionalização. Há uma assembleia empolgada e dois oradores. Cassius Starbuckle, cheio de retórica e tiques na voz, propõe um candidato com um sorriso idiota na cara; um homem a cavalo sobe ao palco e faz uns números com o laço, ouve-se música de circo e, de facto, tudo isto é um circo. Em oposição, Dutton Peabody apela ao voto em Ransom Stoddard, um homem que conhece as leis e acredita na democracia. No entanto, quando é acusado de ter assassinado Liberty Valance (um facínora transformado demagogicamente num bom cidadão), Ransom sai da sala cabisbaixo e tomado pelos remorsos. Tom Doniphon vai atrás dele e abre-lhe os olhos. Através do fumo do cigarro, vemos um segundo flashback que, desvendando a geometria do crime, nos mostra que foi Tom (quem mais poderia ser?) que matou Valance — não para salvar o advogado, mas por causa de Hallie. É um gesto de amor e abnegação. E agora é Ransom que, em certo sentido, tem de se sacrificar e regressar ao teatro da convenção e seguir o seu caminho até Washington. O falso duelo exposto tão em bruto é duplamente indigno: Tom estava escondido quando matou; Ransom vai construir uma carreira sobre uma mentira.
E o que se percebe quando se confrontam as duas cenas é tremendo. A democracia proposta na aula, onde não há nenhum estrado, são todos diferentes, mas estão ao mesmo nível e têm os mesmos direitos, num ápice deu lugar a uma democracia afectada que se apoia em números de espectáculo, imagens da bíblia e mentiras. E nas duas cenas, Ransom, o homem democrático, o peregrino, sai derrotado. Para além disso, no tempo presente do filme, quando ele acaba de contar a verdade aos jornalistas do Shinbone Star, também vemos que o quarto poder murchou: Maxwell Scott é um tipo arrumadinho que prefere ignorar os factos e tratar do seu negócio, está a milhas do bravo Dutton Peabody que falava com as sombras, citava Shakespeare ou Horace Greeley1 e, mesmo que estivesse bêbado, escrevia o que tinha de escrever.
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1. Convém referir que há três citações de Horace Greeley n’O Homem que matou Liberty Valance. Logo no início, quando Ransom Stoddard diz aos jornalistas que chegou a Shinbone porque seguiu literalmente o conselho de Greeley: Vai para o oeste, jovem, vai para o oeste e procura a fama, a fortuna, a aventura. Quando é elogiado por ter escrito «Os criadores de gado contra a criação de um Estado. Pequenos proprietários em perigo», Dutton Peabody diz: Como dizia o meu antigo patrão, Horace Greeley, vamos arrancar-vos o coração. E mais tarde, antes de ser atacado por Liberty Valance, e depois de umas piruetas à volta de Shakespeare, Peabody volta ao seu antigo patrão: Quanto a ti, Horace Greeley, vai para oeste, velho, e cresce jovem com o país.
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