Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

Exame de admissão

A idade das possibilidades de Chantal Akerman em Super 8 . Ah, o prazer de pegar numa câmara e começar a filmar.

Cinema «experimental»

«Ford foi temerário e na velhice atreveu-se a ir mais longe do que nunca. Embora em termos de cinema «experimental», como diria Straub, se possa pensar em The Long Gray Line , que Straub menciona, ou em Two Rode Together ou Donovan’s Reef , julgo que o contraste tremendamente «monstruoso» de Cheyenne Autumn é a coisa mais radical que Ford fez. Aquilo que é mais sério, mais profundo, no filme é o grotesco. Depois da barbárie do texano a matar um índio pelo puro prazer de o fazer, pela curiosidade de saber o que se sente, a indiferença, a estupidez, dos habitantes de Dodge City (cidadãos de pleno direito, civis; Ford não teria sido tão cruel se fossem militares) é o comentário mais sombrio sobre as relações dos americanos com os índios que já vi no cinema. E o facto da cena ser uma palhaçada ainda torna os brancos mais idiotas e faz com que a sua monstruosidade seja muito mais dolorosa.»  Simetrias — os 5 actos nos filmes de John Ford, de Paulino Viota (página 29). (É a primeira vez qu

Três más notícias

25 de Junho. - Sou convidado para ir a casa do chefe do ocultismo científico, director de L'Iniciation . Ao chegarmos a Marollesen-Brie, o doutor e eu somos recebidos por três más notícias: uma doninha matou vários patos, uma criada adoeceu, a terceira já me não lembra. Strindberg, Inferno . Tradução de Aníbal Fernandes.

«Vamos arrancar-vos o coração»

Sempre que volto a ver um filme de John Ford, fico presa. Já conheço as personagens, os actores, as paisagens — é tudo familiar e essa proximidade leva-me a perceber melhor as razões (ou contradições?) de cada um e a  profundidade de campo da história . No caso d’ O homem que matou Liberty Valance (1962) , há um traço que divide os territórios de Tom Doniphon e de Ransom Stoddard. Ambos desejam mais ou menos o mesmo, mas um acredita que a justiça é uma coisa pessoal que passa pela defesa armada rápida (ou ataque, se for caso disso) e o outro acredita na protecção da lei (e dos livros) para todos. Um representa o passado; e o outro, o futuro de uma república democrática fundada sobre uma Constituição cujo preâmbulo abre com as palavras «nós, o povo». Ora nem mais, o povo. O filme começa com Doniphon dentro de um caixão simples e barato, sem pistolas nem botas, um tipo que não tem onde cair morto está para ali à espera de voltar à terra a que sempre pertenceu. Stoddard, pelo contrário, é

Um pouco

O amor de Ethan e Martha é dos mais velados da história do cinema. Não sabemos o que aconteceu entre eles. Há alguns indícios: gestos, olhares, silêncios — mas não passam de subentendidos. Apenas podemos tentar adivinhar. A pista mais evidente é também a mais difícil de reconhecer porque não incide sobre nenhum dos dois; trata-se da recriação do que se passou há muitos anos, só que agora as coisas entre Martin Pawley e Laurie Jorgensen são ligeiramente diferentes. Ford mudou um pouco a expressão , como se faz na música.
(Talvez o laço mais forte entre os filmes de Pedro Costa e John Ford seja uma tremenda habilidade dos actores para falarem com os mortos.)

Think back, Pilgrim!

Vou finalmente acabar de o texto sobre O Homem que Matou Liberty Valance . Já tinha definido a linha condutora, mas estava parado há quase um ano. Sabia que era um texto composto por apenas três segmentos — mas não sabia bem porquê. Ou como? Só hoje de manhã, ao sair do metro e caminhar à chuva e molhar-me toda é que compreendi a minha ideia. É sombria.

Sonho com um congresso de neurologistas e críticos de cinema

Paulino Viota : O mais interessante para o estudo das artes (por exemplo, do cinema; digamos do cinema) seria algo de que não sei nada mas gostaria de saber: o estudo do cérebro; ou seja, a neurociência. Sonho com um congresso de neurologistas e críticos de cinema. Não, críticos não: analistas de cinema como eu, Tag Gallagher ou Raymond Bellour: pessoas que se deram ao trabalho de analisar filmes; que não são assim tantos, porque muitos críticos de cinema geniais, como foi Serge Daney, continuam a trabalhar a partir do seu gosto subjectivo.

Não!

Quando telefonamos à cantora de ópera Agnes Baltsa, porque num lugar qualquer do mundo alguém precisa de uma Carmen, ela mete-se num avião com os seus três figurinos, um para o primeiro acto, outro para o segundo acto e outro para o terceiro acto. E lá está ela com os seus três figurinos, num qualquer teatro de ópera, lá está ela com os seus três figurinos, sempre os mesmos. E eu diria: Mas isso é um Não! Só que ninguém ouve este «Não»! Duas mil pessoas para ali sentadas e a pensar que estão diante de uma diva extravagante que não bate bem e ninguém ouve este Não. Vêem a ausência absoluta de criatividade de Agnes Baltsa mas não vêem nisso um Não! René Pollesch,  O amor é mais frio que o capital . Tradução de José Maria Vieira Mendes.

A Barcelona

Retrospectiva i cartablanca a Paulino Viota:   Las ferias,  José Luis,   Tiempo de busca, Fin de un invierno,  Duración, Contactos,  Con uñas y dientes,  Cuerpo a cuerpo,  (P. Viota) Der Bräutigam, die Komödiantin und der Zuhälter  (Danièlle Huillet i Jean-Marie Straub) Staroie i novoe (S. Eisenstein) Hatari! (Howard Hawks) The Sun Shines Bright (John Ford) Roma (F. Fellini) Bande à part (Jean-Luc Godard)

Limpar o campo

A minha mãe diz-me, por telefone, que as figueiras também arderam. É muito triste, mas é a vida, diz ela. Já morreram pessoas e outras ficaram sem casa, e isso, sim, é uma tragédia. Se tivermos força, acrescenta, vamos limpar o campo e plantar outras. Serão precisos vários anos até aparecerem novos figos. Ainda seremos nós a colhê-los? E serão tão doces como estes que o fogo devorou?

Música concreta

Às vezes tenho vontade de mexer no som de certos filmes, tirar-lhes a música que me parece a mais, substituí-la por sons. Em  Paris s’en va , em vez Piazolla (que me irrita), preferia: o movimento dos carros, uma campainha, passos, alguém a correr, ruídos de obras, umas frases que ficam no ar, talvez o rugido de um leão.

O pensamento mágico do capitalismo

O abismo cognitivo foi instalado quando todos nós vimos que as coisas podem ser reproduzidas em série e que a caixinha do leite ou qualquer outro produto que está na gôndola do supermercado, aquela coisa apareceu ali (…) e não importa mais o processo. Então a caixinha de leite e toda essa facilidade da gôndola seriam coisas que aparecem na sua cara e você pode simplesmente consumir. É isso que o Davi Kopenawa Yanomami, nessa sua prospecção do mundo do branco que ele olha de dentro da floresta, dirá que é o ‘mundo da mercadoria’. Vamos imaginar que esse mundo da mercadoria é mágico. Ele faz aparecer água na torneira, leite na caixinha e coisas na gôndola. Quer dizer, é um pensamento mágico o desse mundo subalterno à ordem capitalista. É tão mágico quanto o pensamento de um xamã. O pensamento mágico de um escravo do capitalismo é tão fantástico que ele acredita que o capitalismo pode acabar com o mundo e criar outro. Eu me pergunto: por que um cara vai financiar o envio de um foguete par

Não cancelar

Desde que me apercebi do botão que permite anular o envio de um email, sinto sempre um pequeno arrepio quando os deixo seguir o seu caminho — um pouco pela tentação de voltar atrás, de apagar os disparates, mas principalmente pelo desejo de não o fazer. A possibilidade de cancelar, torna qualquer envio trivial num acto um bocado perverso.

Dois continentes a rir

Alan Schneider, na sua autobiografia, Entrances , descreve a catástrofe que ocorreu quando, na primeira encenação em solo americano de À Espera de Godot , os espectadores acorreram à sala, esperando ver Bert Lahr numa comédia burlesca tradicional (expectativa esta encorajada pela respectiva campanha publicitária, que anunciou a obra como «uma peça que pôs dois continentes a rir a bandeiras despregadas»), e acabaram irritados e confusos ao perceberem que a experiência não se enquadrava nas suas expectativas. Marvin Carlson, Palco Assombrado . Tradução de Paulo Faria.

Sete mãos esquerdas

Fomos ver a companhia de Trajal Harrell dançar ao som do Concerto de Colónia, de Keith Jarrett. Em casa, depois do espectáculo, leio no jornal que o pianista sofreu um AVC em 2018 e que tem a mão esquerda paralisada. Já não consigo pensar senão nas mãos dos sete bailarinos a desenharem aqueles acordes no ar. Belos e pungentes. Um bailado para sete mãos esquerdas.

Eu também já tinha reparado nisto

Há aquela anedota sobre os amigos de Jane Austen que evitavam falar na presença dela por medo de irem parar a um livro. Não sei exatamente como é que a poesia e a ficção funcionam, mas parte da questão é que nós reparamos em muito mais do que julgamos reparar. Uma das particularidades da ficção não é tanto fazer o papel de observador em benefício dos outros, mas despertar nos leitores a consciência das suas próprias capacidades de observação. Por isso, enquanto leitor, muitas das descrições ou das digressões que me interessam não são as que me parecem inteiramente novas, mas as que envolvem aquele inquietante “Meu Deus, eu também já tinha reparado nisto, mas nunca me dei ao trabalho de o pôr em palavras”. David Foster Wallace numa conversa com Mark Shechner.