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Mensagens

Génesis e Apocalipse

Orlando Ribeiro: Os tremores de terra e as erupções vulcânicas revelam um mundo ainda em formação e colocam às vezes gerações humanas em presença de um ambiente, raro no globo, que ao mesmo tempo tem qualquer coisa de Génesis e de Apocalipse, evocando portanto os medonhos cataclismos que, na imaginação dos homens, acompanham as grandes transformações da face da Terra.

Três mulheres

Deixar de confiar nos milhares de ditames do alfabeto para podermos restituir liberdade às incessantes metamorfoses e metáforas de uma verdadeira linguagem regressando aos locais de filmagem do passado tendo em conta os tempos actuais.  As últimas notas escritas por Godard também são sobre As Filhas do Fogo .

A secreta negrura do leite

Diálogos Imaginários entre Santo Agostinho e Buster Keaton

Alguém descobriu que um antigo funcionário, que tem estado doente e cujas baixas têm sido prolongadas repetidamente, se entretinha a redigir registos falsos e a inseri-los no sistema. Por causa disso, existem neste momento milhares de livros fictícios catalogados entre os verdadeiros. Alguns têm um título tão absurdo que saltam à vista, outros confundem-se com os legítimos devido à plausibilidade — o que não é pequeno feito, porque simular a banalidade e a conformidade é uma proeza que não está ao alcance de todos. E ele mencionou de memória, para meu deleite, alguns exemplos: Contributos para Uma História da Regulamentação da Talassoterapia na Província da Pomerânia; Diálogos Imaginários entre Santo Agostinho e Buster Keaton; Raízes Históricas do Hábito de Depilar as Sobrancelhas; Confissões de Um Amestrador de Colibris; Testemunhos Fraudulentos sobre Eclipses Lunares; Pode o Feldspato Ser Considerado Um Fetiche? Democracia, de Alexandre Andrade (página 342).

Dois bilhetes de presente

MULHER ( entra precipitadamente ): Ora vê lá tu, marido, vinha eu a subir as escadas e não é que me aparece a dona da casa e me vem outra vez com outra oferta? Adivinha o que é que ela me deu? MARIDO: Deixa-te de criancices, diz lá. MULHER: Toma, vê, dois bilhetes de teatro para o Fausto ! Que dizes a isto? MARIDO: Os meus agradecimentos! Mas porque não vai ela mesma, essa velha pega? MULHER: Oh! Certamente que não tem tempo. MARIDO: Ah, ela não tem tempo, e nós temos que ter. MULHER: Também não deves ser assim tão ingrato! MARIDO: Não me digas que ainda não percebeste que essa mulher nos tomou de ponta, senão não nos ia oferecer os bilhetes. Karl Valentin, A Ida ao Teatro e outros textos . Tradução de Luiza Neto Jorge.

Faísca no metro

Sentei-me ao lado de uma miúda de 11 ou 12 anos que ia a ler O Mundo de Sofia  e abri Democracia , do Alexandre Andrade (preparação para os festejos — vermelhos — da implantação da República) . Depois da Trindade, ela perguntou à mãe o significado de  centelha . A mãe — que não é portuguesa, mas fala bastante bem português — respondeu brilho . Meti-me na conversa e atirei: Faísca . Por um breve instante, fui um dicionário.

Strindberg, outra vez

As personagens escutam atrás das portas, os móveis têm gavetas secretas, os papéis voam, as fotografias caem das paredes, os mortos falam por carta com os vivos. Os vivos vêem coisas, pressentem outras, bebem sem parar para não ficarem sóbrios, mentem uns aos outros - os mortos são os únicos que não mentem -, lançam fogo à casa. «Não há remédio?», pergunta o filho. «Não, não há remédio», responde a mãe. O Pelicano , de Strindberg, é uma história de terror.

Tamana

Sentada na escada de cimento no pátio da casa onde as oito agora vivem recorda o dia em que chegou. Lembra-se que fez o pequeno-almoço. “Fiz omelete.” E ri. “Os ovos são linguagem universal” .

«Senior woman spending quality time with her daughter»

As séries de televisão (e a maior parte dos filmes que se fazem) estão para o cinema assim como as imagens de banco estão para a fotografia.

Um texto da noite

Esta noite sonhei que escrevia um texto sobre este filme e agora, acordado, ao tentar escrevê-lo, não sei como começar, talvez porque o texto que sonhei, o texto que queria escrever antes de adormecer, antes de o sonhar, era um texto da noite, não um texto do dia. Era um texto sobre o que se passa na solidão da noite, na solidão de um quarto. Queria escrever sobre o plano, visto através de uma janela, em que Lucien brinca com os vestidos da sua antiga patroa. Queria falar desse momento solitário e íntimo de Lucien, tão frágil, que não devia ser visto por ninguém e, no entanto, através da janela, Isabelle vê. (...)  Espiar es aprender, El diablo, quizás...

Inferno

A noite aproxima-se. Strindberg fecha-se no quarto e prepara-se para mais um combate nocturno com o invisível: «Ponho a capa militar, o boné e as botas, decidido a dormir vestido e a morrer como um guerreiro cheio de bravura, que desafia a morte depois de enfrentar a vida.» E logo a seguir: «Cerca das onze horas, a atmosfera do quarto começa a ficar pesada e uma angústia mortal vence-me a coragem.»

Muitos anos

Já escrevi e apaguei várias vezes este texto. Ao fim de muitos anos, vou mudar de trabalho. Vou finalmente dedicar-me ao ofício que sempre desejei. Quero escrever sobre o assunto e não consigo. Falta de talento, com certeza. Mas é mais do que isso. A ideia tornou-se real. O excesso de realidade paralisa.

Para o matadouro

1. O encontro de Thursday com Cochise em Fort Apache é brutal — não só pelo massacre consequente, mas principalmente pelas ressonâncias políticas que ainda hoje provoca. Tudo o que o chefe apache reclama ao tenente-coronel é justo e devido. Em oposição, o comportamento dos americanos é infame: Thursday não respeita o acordado, menospreza os conselhos de York e as reivindicações de Cochise e ataca (aliás, já tinha decidido isso na véspera). Como é fácil de prever, a desproporção dos americanos e a colocação táctica dos índios transforma o confronto numa carnificina. 2. O capitão Kirby York foi sempre contra esta estratégia ambiciosa e cega, mas no fim, perante os jornalistas, (depois de um brevíssimo estremecimento?) mente e glorifica o impiedoso tenente-coronel. Straub pergunta: Como pode a história oficial ser o tapete sob o qual escondemos as falhas de uma nação; e a democracia, o tecido com que os bárbaros se vestem de respeitabilidade? Essa última cena é terrivelmente amar

Desfile de modelos militares (in paise of Aura Lea)

O que mais me agrada no livro de Paulino Viota sobre John Ford é a forma como ele concilia uma análise estrutural quase científica (método, hipóteses, verificações, etc.) com belíssimas intuições: sim, «podemos ver The Long Gray Line como um desfile de modelos militares ou como um desses livros ilustrados sobre a evolução dos uniformes». John Ford havia de gostar desta descrição simultaneamente directa e esquiva. P.S. O casaco de Marty ainda tem a etiqueta da loja.

Exame de admissão

A idade das possibilidades de Chantal Akerman em Super 8 . Ah, o prazer de pegar numa câmara e começar a filmar.

Cinema «experimental»

«Ford foi temerário e na velhice atreveu-se a ir mais longe do que nunca. Embora em termos de cinema «experimental», como diria Straub, se possa pensar em The Long Gray Line , que Straub menciona, ou em Two Rode Together ou Donovan’s Reef , julgo que o contraste tremendamente «monstruoso» de Cheyenne Autumn é a coisa mais radical que Ford fez. Aquilo que é mais sério, mais profundo, no filme é o grotesco. Depois da barbárie do texano a matar um índio pelo puro prazer de o fazer, pela curiosidade de saber o que se sente, a indiferença, a estupidez, dos habitantes de Dodge City (cidadãos de pleno direito, civis; Ford não teria sido tão cruel se fossem militares) é o comentário mais sombrio sobre as relações dos americanos com os índios que já vi no cinema. E o facto da cena ser uma palhaçada ainda torna os brancos mais idiotas e faz com que a sua monstruosidade seja muito mais dolorosa.»  Simetrias — os 5 actos nos filmes de John Ford, de Paulino Viota (página 29). (É a primeira vez qu