«No terceiro livro de O Paraíso Perdido, Milton representa Deus a asseverar que fez o homem "capaz de ter resistido, embora livre para cair". Deus sabia que Adão cairia, mas não o compeliu a isso, e com esse fundamento repudia a responsabilidade jurídica. Esse argumento é tão mau que Milton, se estava tentando fugir à refutação, fez bem em atribuí-lo a Deus. Pensamento e ação não podem ser separados assim: se Deus tinha presciência, devia ter sabido, no instante em que criou Adão, que estava criando um ser que iria cair. Apesar de tudo, a passagem nos fica na memória, por sugestiva. Pois o Paraíso Perdido não é apenas uma tentativa de escrever mais uma tragédia, mas de expor o que Milton acreditava que fosse o mito arquetípico da tragédia. Por isso a passagem é mais um exemplo da projeção existencial: a base real da relação do Deus de Milton com Adão é a relação do poeta trágico com o seu herói. O poeta trágico sabe que o seu herói ficará em situação trágica, mas ele emprega toda a sua força para evitar a sensação de ter forjado aquela situação para seus próprios objetivos.»
de Cristina Fernandes e Rui Manuel Amaral
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