Num livro esquecido dos anos 60, Jorge Semprún conta uma história que tinha lido ou ouvido de Ievtuchenko sobre Pasternak. “Certo dia” - escreve Semprún - “um operário pediu a Pasternak que lhe apontasse o caminho da verdade. O escritor respondeu: ‘Que ideia a tua! Nunca tive a intenção de apontar a alguém fosse o que fosse. O poeta é como as folhas duma árvore que sussurram com o vento, mas não tem o poder de encaminhar ninguém.’” Semprún comenta então: “Todos conhecemos este hábito dos poetas se confundirem com o reino vegetal: comparam-se a árvores, folhas, algas.”
Claro que Pasternak, talvez por humildade, talvez por orgulho, não disse ao operário tudo o que pensava. É óbvio que o poeta não pode apontar o caminho da “verdade” porque ninguém sabe exactamente o que é “a verdade” e, portanto, ainda menos o caminho para lá chegar. Mas a poesia, e isso sabemo-lo todos, encerra uma espécie de verdade própria, essencial, subterrânea, capaz de revelar territórios desconhecidos no avesso do mundo.
Na poesia de António Pedro Ribeiro dificilmente se avistam bosques, árvores, folhas e outros elementos do reino vegetal. A sua “verdade” revela-se em objectos e lugares bastante mais “prosaicos”. É a verdade das ruas, dos cafés e de certos ambientes de bas-fond. É a verdade dos empregados e companheiros de mesa, das conversas de balcão, das flores de plástico e da TV aos gritos, pregada à parede. É a verdade da solidão, do abandono, do tédio, dos amores impossíveis, das amizades e traições, da bebida, da penúria e da doença, dos ajustes de contas com a política, a arte e a vida. É a verdade da morte lenta dos cafés, que é a verdade da nossa própria morte.
É neste ponto, parece-me, que a obra de Ribeiro revela a chave para a sua “verdade” mais profunda. O que lemos nos poemas é a carne e o sangue do próprio autor. O que há nestes poemas de frágil, elevado, repetitivo, obstinado, forte, mesquinho, louco, extravagante, copioso, triste e angustiado, é arrancado ao seu corpo. Não há aqui truques nem pretensões de virtuosismo. Não há segundos sentidos nem demasiadas figuras de estilo, e a técnica tem muito pouco a ver com isto. O que aqui lemos é a “vida real”, a passagem do tempo, a monótona litania dos dias, tanto quanto é possível fixá-los em texto. Mais do que uma coisa mental, a poesia de Ribeiro é uma coisa física. Não há lugar a artifícios ou erratas: onde se lê “eu” deve ler-se “António Pedro Ribeiro.”
São poucos os autores desta geração em que vida e obra, personalidade e palavra, se confundem de uma maneira tão clara e pungente. Talvez por isso Ribeiro seja também o melhor diseur da sua própria poesia. Justamente porque a leitura é um acto físico, que envolve língua, músculos, movimento e energia, e esta poesia exige ser lida, precisa desesperadamente de voz, vibração, substância. O papel e a tinta não chegam. Suspeito que, neste como noutros pontos, Ribeiro esteja mais próximo de alguns autores das primeiras décadas do século XX do que da maioria dos seus contemporâneos.
É, pois, nesta natureza inteira e conscientemente física que reside a maldição da poesia de Ribeiro. Uma maldição que a remete para uma certa marginalidade, dez pés abaixo do mundo. Marginalidade inevitável? Sem dúvida, porque nunca haverá uma saída limpa para esta poesia. Ribeiro está confinado a uma estética cujos muros ele próprio ergueu e no interior dos quais se acha apenas ele. E é exactamente isso que admiramos nele.
Na poesia de António Pedro Ribeiro dificilmente se avistam bosques, árvores, folhas e outros elementos do reino vegetal. A sua “verdade” revela-se em objectos e lugares bastante mais “prosaicos”. É a verdade das ruas, dos cafés e de certos ambientes de bas-fond. É a verdade dos empregados e companheiros de mesa, das conversas de balcão, das flores de plástico e da TV aos gritos, pregada à parede. É a verdade da solidão, do abandono, do tédio, dos amores impossíveis, das amizades e traições, da bebida, da penúria e da doença, dos ajustes de contas com a política, a arte e a vida. É a verdade da morte lenta dos cafés, que é a verdade da nossa própria morte.
É neste ponto, parece-me, que a obra de Ribeiro revela a chave para a sua “verdade” mais profunda. O que lemos nos poemas é a carne e o sangue do próprio autor. O que há nestes poemas de frágil, elevado, repetitivo, obstinado, forte, mesquinho, louco, extravagante, copioso, triste e angustiado, é arrancado ao seu corpo. Não há aqui truques nem pretensões de virtuosismo. Não há segundos sentidos nem demasiadas figuras de estilo, e a técnica tem muito pouco a ver com isto. O que aqui lemos é a “vida real”, a passagem do tempo, a monótona litania dos dias, tanto quanto é possível fixá-los em texto. Mais do que uma coisa mental, a poesia de Ribeiro é uma coisa física. Não há lugar a artifícios ou erratas: onde se lê “eu” deve ler-se “António Pedro Ribeiro.”
São poucos os autores desta geração em que vida e obra, personalidade e palavra, se confundem de uma maneira tão clara e pungente. Talvez por isso Ribeiro seja também o melhor diseur da sua própria poesia. Justamente porque a leitura é um acto físico, que envolve língua, músculos, movimento e energia, e esta poesia exige ser lida, precisa desesperadamente de voz, vibração, substância. O papel e a tinta não chegam. Suspeito que, neste como noutros pontos, Ribeiro esteja mais próximo de alguns autores das primeiras décadas do século XX do que da maioria dos seus contemporâneos.
É, pois, nesta natureza inteira e conscientemente física que reside a maldição da poesia de Ribeiro. Uma maldição que a remete para uma certa marginalidade, dez pés abaixo do mundo. Marginalidade inevitável? Sem dúvida, porque nunca haverá uma saída limpa para esta poesia. Ribeiro está confinado a uma estética cujos muros ele próprio ergueu e no interior dos quais se acha apenas ele. E é exactamente isso que admiramos nele.
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