Nas suas Entrevistas com Chestov, Benjamin Fondane cita uma frase de Chestov que diz que a melhor maneira de filosofar é “andar sozinho”, sem tomar outro filósofo como guia; melhor ainda é falar de si mesmo. Fondade acrescenta mais adiante: “o tipo do novo filósofo é o pensador privado, Job sentado sobre o seu esterco”. Cioran pertence a essa raça de pensadores. Durante muito tempo ignorado, lido apenas por marginais.
Se os seus paradoxos ou as suas piruetas divertem ou irritam alguns dos seus leitores, outros — os verdadeiros — experimentam uma estranha sensação de euforia à beira do abismo, como essa jovem libanesa que lia Cioran sob os bombardeamentos, numa cave em Beirute, pois achava o seu espírito estimulante e o seu humor um tónico no meio do desastre. Ou como aquela japonesa que, querendo matar-se, descobriu a tempo as palavras de Cioran sobre o suicídio e começou a escrever-lhe. A felicidade de uma obsessão partilhada transformou o pesadelo numa conversa epistolar.
O que descobrem os que se aproximam da sua obra é o “efeito Cioran”, o dom que ele tem de nos arrastar, através da escrita, para uma aventura muito além do livresco. É o tom, que ele mesmo define como “o que não se pode inventar, aquilo com que se nasce… uma graça herdada, o privilégio que alguns têm de fazer sentir a sua pulsação orgânica; o tom é mais que o talento, é a sua essência” (Do inconveniente de ter nascido).
Cioran sempre repudiou o pensamento teórico enquanto tal: “não inventei nada, não fui mais do que o secretário das minhas sensações”. As leituras trouxeram-no constantemente de volta a si mesmo, entre os vivos onde reencontrou as antigas misérias que tinha espezinhado no caminho para o desapego. O seu cepticismo foi enxertado num temperamento sempre em guarda. “O que fica de um filósofo é o seu temperamento… quanto mais impetuoso, mais se lançará contra tudo”, escreve em O demiurgo malvado. Mestre do paradoxo, da negação, da difamação, “cortesão do vazio”, segundo uma expressão que podia ser sua, Cioran é este paradoxo: um céptico que não se desprendeu da vida e que foi sempre prisioneiro dos seus humores. Esta dependência já é perceptível nos primeiros ensaios escritos em romeno. É interessante folhear hoje, à luz da sua obra completa, o Cioran longínquo dos anos trinta.
Esses ensaios de juventude, se os relacionamos com a obra francesa, esclarecem o percurso que tomou depois da sua passagem, com armas e bagagens, para o francês, quer dizer, tal como era no final da década de trinta, leitor apaixonado de Kierkegaard e de Chestov, e mais ainda de Eclesiastes e de Job, os seus livros de cabeceira. Descobrimos aí o que prevaleceu, o que Cioran conservou e aquilo que deitou fora, o “velho homem” da sua juventude e o “homem novo” em que se transformou depois do encontro com a língua francesa.
Aos vinte e três anos, quando publica Nos cumes do desespero (Pe culmile disperarii, 1934), Cioran já tinha lido tudo e também definido o objecto das suas ruminações: sozinho em luta consigo mesmo, com Deus e a Criação. Desde o início virou a sua lucidez quase monstruosa contra si: o “pensar contra si mesmo” e o “aficionado dos paradoxos” encontram-se já em Nos cumes do desespero. Intitula os primeiros capítulos de modo revelador: “Não poder viver mais”, “O sentimento do fim”, “Grotesco e desespero”, “Pressentimento da loucura”, “Melancolia”, “Êxtase”, “Apocalipse”, “Monopólio do sofrimento”, “Ironia e anti-ironia”, “Banalidade da transfiguração”, etc.
Já está tudo aí, o sentimento do irreparável e do irremediável, a inquietação, a angústia, o sentimento do nada, o elogio do silêncio, até as suas manias, as suas insónias, os seus passeios nocturnos, a sua preguiça, a sua paixão pela música, a obsessão do suicídio. No dia em que fez vinte e dois anos escreveu no final de um capítulo: “Experimento uma estranha sensação ao pensar que com esta idade sou especialista no problema da morte”. Nos cumes do desespero proclama o tema do exílio metafísico: “Será a existência o nosso exílio e o nada uma pátria?” — tema a que voltará quarenta anos mais tarde em O inconveniente de ter nascido: “Vivi toda a minha vida com o sentimento de ter sido afastado do meu verdadeiro lugar. Se a expressão ‘exílio metafísico’ não tivesse nenhum sentido, bastaria a minha existência para lhe atribuir um.” Nos cumes do desespero revela um Cioran que deseja sublinhar “os recursos líricos da subjectividade” e para quem “o lirismo é uma forma bárbara cujo valor é não ser nada mais do que sangue, sinceridade e chamas”, um Cioran que detesta “as civilizações refinadas, anquilosadas em formas e enquadramentos” e os homens que, mesmo em agonia, se obrigam a marcar uma posição. (Mais tarde, em A tentação de existir, voltará a essa ideia e a essa imagem no retrato que faz dos franceses, caracterizados como um povo de comediantes, “grandes especialistas da morte”.) Num ensaio revelador, compara o desespero enraizado no ser com a dúvida, que é mais cerebral, e declara que os psicólogos acabam por se tornar cépticos. Repudiando o lirismo da sua juventude, adoptando a dúvida e o sorriso irónico do moralista, Cioran não abandonará as suas obsessões, os seus caprichos, os seus tiques.
Continuará obcecado pela degradação do corpo, pela doença e sofrimento que o faziam escrever em 1934: “O problema do sofrimento é infinitamente mais importante que o do silogismo… uma lágrima tem sempre raízes mais profundas do que um sorriso”. E mais adiante, no capítulo “Nada importa”, estas linhas que ficarão gravadas em si: “Nunca chorei, pois as minhas lágrimas transformaram-se em pensamentos. E esses pensamentos, não são eles tão amargos como as lágrimas?” Vinte anos mais tarde, voltará a utilizar duas palavras chave, “silogismo” e “amargo” para as aplicar em francês no título que será um sucesso: Silogismos da amargura (1952).
Publicado em 1937, ano em que chegou a Paris, Lágrimas e Santos (Lacrimi si Sfinti) estava ainda impregnado desse “filosofar poeticamente” que defendia em Nos cumes do desespero. Encontramos nesse livro a sua paixão pelos místicos, santos e música, temas que recordará em Breviário de decomposição. (Em romeno: “Os únicos homens que invejo são os confessores e os biógrafos dos santos, para não falar dos seus secretários…” Em francês: “Houve um tempo em que achava que ser secretário de um santo constituía a carreira mais alta reservada a um mortal…” Convém assinalar a sombra de um sorriso que paira sobre a fórmula em francês.). Nesses ensaios cheios de efusões, contradições e imprecações bem cioranianas, ele lançava uma hipótese curiosa. Antecipava aquilo a que chamava “uma hermenêutica das lágrimas que pretendia descobrir as suas origens e todas as interpretações possíveis… o objectivo de tal hermenêutica seria guiar-nos no espaço que separa o êxtase da maldição”.
Em todos os autores há uma imagem chave que responde a uma obsessão profunda e reveladora. Assim é a imagem das lágrimas e do seu corolário, os prantos, ao longo da obra de Cioran. Este curioso fascínio persegui-lo-á mesmo quando já nada o liga a essa época, nem àqueles que “encantaram a sua juventude” e pensamos logo em Nietzsche. Convertido mais tarde num “especialista em decadências”, guardará saudades metafísicas violentas e a imagem das lágrimas surgirá em redor de uma reflexão, subindo à superfície da consciência como uma lembrança constante. Mais tarde as lágrimas cristalizar-se-ão lentamente, desembaraçadas das conotações da sua juventude lírica. Em Lágrimas e Santos prevê o dia em que se arrependerá, em que ficará envergonhado, por ter amado tanto os santos e “o misticismo, essa sensualidade transcendente”. Separar-se-á dos santos, das suas efusões, mas o adeus ao lirismo não apagará em si a imagem e o pensamento que o obcecam. “Pedem-vos actos, provas, obras e tudo o que vocês podem produzir são lágrimas transformadas” (O demiurgo malvado). “O destino terrestre acorrentou-nos a esta matéria taciturna, lágrima petrificada contra a qual os nossos prantos, nascidos do tempo, se quebram, enquanto ela, imemorial, caiu do primeiro estremecimento de Deus” (Breviário de decomposição). “Devíamos atirar-nos ao chão e chorar sempre que nos apetece, mas desaprendemos a chorar… devíamos possuir a faculdade de gritar pelo menos um quarto de hora por dia. Se quisermos um equilíbrio mínimo, regressemos ao grito… a raiva ajudar-nos-á, ela que procede do próprio fundo da vida”. (Ibid.) “A música, sistema de adeuses, evoca uma física cujo ponto de partida não seriam os átomos, mas as lágrimas” (Silogismos da amargura). “Sinal que se compreendeu tudo: chorar sem motivo” (O demiurgo malvado). “A mentira, fonte de lágrimas! Essa é a impostura do génio e o segredo da arte” (Breviário de decomposição).
Entre o Cioran romeno que aos vinte e seis anos escrevia em Lágrimas e Santos: “Impossível amar Deus de outra forma que não seja odiando-o. Quem não experimentou a emoção do absoluto com um punhal na mão não suspeita o que significa o terror metafísico da consciência”, e o Cioran que escreve em O inconveniente de ter nascido: “dividido entre a violência e a desilusão, pareço um terrorista que ao sair de casa com a ideia de cometer um atentado detém-se a meio do caminho para consultar Eclesiastes ou Epíteto”, há identidade e continuidade de tom. Céptico, continua a ser “um negador ávido de qualquer catastrófico sim”, um “místico renitente”, um Job mais ou menos curado, mas que inicialmente foi este leproso evocado em Lágrimas e Santos: “Job, lamentações cósmicas e salgueiros-chorões… chagas abertas da natureza e da alma… coração humano, chaga aberta de Deus”. Mais tarde, em Silogismos da amargura a ideia apura-se e a imagem condensa-se em francês: “todo pensador, no início da sua carreira, opta contra sua vontade pela dialéctica ou pelos salgueiros-chorões”. Renunciando à busca dos cumes, Cioran optou, como indica o enunciado claro e brilhante em francês, pela lucidez feroz, repudiando o absoluto e os salgueiros-chorões, mas de forma alguma os seus humores e as suas obsessões, rodando em redor de si mesmo, dos abismos e das ansiedades que oculta com uma mistura típica de humor, raiva e resignação, voltando sempre aos seus estados de alma. “É culpa minha se não sou mais do que um arrivista da neurose, um Job em busca de uma lepra, um Buda de pacotilha, um Cita mandrião e desorientado?” Escutemo-lo a definir-se tomando-se a si mesmo como objecto da sua zombaria: “um fracassado do deserto”, “um estilista sem coluna”, “um erudito sardónico”, “um coveiro polido com metafísica”, “um veleidoso do nirvana”, “um tristonho por decreto divino”, “um nado-morto de clarividência”, “um delirante preocupado com a objectividade”, “um furioso pela metáfora”, etc.
Cioran compraz-se num auto-retrato de estrangeiro, no qual reconhecemos um personagem familiar, real ou imaginário, fascinado pelo ócio (“quando se frequentaram regiões onde o ócio era de rigor…”), pelo fatalismo surgido do chão (“acarinhei tanto a ideia de fatalidade…”) e pelo tédio, um homem que herdou do património da sua tribo… “a incapacidade de iludir-se”, um “homem neurótico” atraído pelos falhados (ver “a efígie de um falhado” em Breviário de decomposição), e pelos tarados — os adjectivos: tarado, fracassado, aterrado, inaudito, inominável; expressões como “os nossos estupores quotidianos” — surgem com insistência sob a sua pena, como as cores sombrias ou berrantes da paleta de um pintor. O sarcasmo cioranesco, frequentemente dirigido contra as suas próprias tentações — que vira ao contrário e espezinha —, esconde uma forma de irrisão subtil, florescimento da irrisão balcânico-latina que em romeno se chama zeflemea. As suas “raivas e resignações” são o eco de um espírito de polémica e de renúncia, dois traços que Mircea Vulcanescu considerou uma das chaves do espírito romeno num ensaio que ficou célebre sobre “A dimensão romena da existência” (1944). Refira-se que esse ensaio foi dedicado ao seu amigo E. M. Cioran. O espírito romeno, escreve Vulcanescu, depois de atacar com virulência e aniquilar o adversário (homem, História, palavras), resigna-se, caindo num fatalismo que lhe é próprio.
Quando Cioran escreve: “seria necessário reencontrar o sentido do destino, o gosto da lamentação, ressuscitar as carpideiras nos funerais”, quando exclama: “Não apreciar senão o hino, a blasfémia e a epilepsia”, acreditamos ouvir por trás do brilho do estilo e dos gestos intencionais, uma tonalidade subjacente, um lamento longínquo disfarçado de irrisão que confere ao francês um sabor e um encanto estranhos. Estas fórmulas onde as lágrimas à oriental encontram-se com o espírito seco do francês, frases como: “Farto de me confundir nos funerais dos meus desejos” fazem ouvir em estado puro o som ou o tom cioranesco. Mais tarde, o aforismo dominará pela sua brevidade, pondo em surdina, embora sem nunca apagar, o eco desse contínuo lamentoso. “Apostemos na catástrofe, mais conforme ao nosso génio e aos nossos gostos”, escreve no mais puro estilo seco e breve do moralista francês, resumindo assim em Esquartejamento o que sempre foi o fundo da sua atitude.
Aliás, desde a “Carta a um amigo longínquo” (História e utopia), onde se define explicitamente como procedente de outro lugar (“Sinto a Ásia a mexer-se nas minhas veias… apareço no meio dos civilizados como um intruso, um troglodita enamorado pela caducidade, mergulhado em orações subversivas, à mercê de um pânico que não emana de uma visão do mundo mas de crispações da carne e das trevas do sangue”), Cioran nunca deixou de proclamar e de renegar ao mesmo tempo as suas origens. “Só experimentei uma sensação de verdade, um arrepio do ser, em contacto com analfabetos; os pastores dos Cárpatos causaram-me uma impressão muito mais forte do que os professores da Alemanha ou os intelectuais de Paris”. Ou então: “Como dominar-se, como ser dono de si mesmo quando se procede de uma região em que rugimos nos enterros?”.
É um traço de Cioran ter sabido adoptar em relação a si mesmo a distância necessária para a criação literária, preservando tudo e fazendo passar para francês qualquer coisa do espírito do “pensador orgânico” que ele era nos ensaios romenos. “Frente ao homem abstracto que pensa pelo prazer de pensar, ergue-se o homem orgânico, o pensador determinado por um desequilíbrio vital que se situa para além da ciência e da arte. Gosto dos pensamentos que guardam um cheiro a sangue e a carne. Os homens ainda não compreenderam que o tempo das preocupações superficiais e inteligentes já passou e que o problema do sofrimento é infinitamente mais revelador que o do silogismo, um grito de desespero infinitamente mais revelador que uma observação subtil… Porque é que não queremos admitir o valor exclusivo das verdades vivas?” (Nos cumes do desespero).
A língua francesa converteu Cioran no que é mediante um efeito de travão e de controlo imposto aos seus exageros, às suas violências e às suas explosões. É interessante observar que a língua em que escreveu os seus livros romenos é a língua desordenada de um jovem intelectual balcânico de antes da guerra. A forma, as fórmulas, segredo do estilo de Cioran em versão ocidental, são um dom francês deste “Job convertido às escolas dos moralistas”.
Sanda Stolojan
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