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Tu sabes, tu és uma mulher.




Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles
é um objecto de muitas perplexidades: endógenas, históricas, cinematográficas, e outras ainda mais variáveis pois prendem-se com as características de quem assiste à projecção, como se o filme nos convocasse para qualquer coisa.

Ainda antes da primeira imagem, o título identifica e regista Jeanne numa morada: cais do comércio, 23. Mais do que nomear, é apresentada uma sinopse plena de significados. Mas as perplexidades continuam: como é que uma miúda de vinte e cinco anos consegue ter uma visão tão precisa e profunda do quotidiano de uma mulher de meia idade? Como é que ela sabe a este ponto? Como é que consegue detalhar cada movimento do corpo de Delphine Seyrig e ao mesmo tempo deixar na sombra tudo o que se passa na cabeça. Quando a actriz pede explicações1, Chantal diz que ignora o que essa mulher pensa, apenas conhece os seus gestos. Talvez seja este avançar teimoso no não saber, esta decisão de afrontar um enigma, que transforma a captação de rotinas banais e desprovidas de motivações num documento essencial sobre o papel desempenhado pela maior parte das mulheres na sociedade. Reparem bem, o sentido teatral ou expositivo2 que percorre Jeanne Dielman também existe nos nossos actos, nas nossas casas. Em ambas as situações desempenhar quer dizer simultaneamente cumprir e representar — só que o filme instaura uma distância e uma frontalidade que nos permitem ver.

Sem recorrer aos códigos habituais do cinema, Chantal Akerman lança suspeitas tremendas sobre Jeanne. Observamos a sua vida durante três dias, porém não a conhecemos: é viúva, vive num pequeno apartamento em Bruxelas com o filho adolescente, vai às compras, ao sapateiro, ao banco, faz a cama, lava a louça, recebe homens em casa, toma banho, cozinha. Segue uma ordem rígida e silenciosa, mas ignoramos as razões desses procedimentos, pelo menos as causas e as consequências não correspondem a padrões reconhecíveis. Sem tão pouco se confundir com a realidade3, não há um passo em falso na continuidade mecânica da sua vida, mesmo quando o tempo parece sair dos eixos no segundo dia, desestabilizando e apressando um pouco o seu comportamento, o que vemos durante duzentos e um minutos assemelha-se à rotina de uma fábrica onde as tarefas se sucedem, fragmentadas, lentas, meticulosas, eficazes. Porque é que Jeanne Dielman age assim? Mais uma vez não podemos responder categoricamente, isso é algo que o método de trabalho de Chantal — não psicológico e por isso não policial — impossibilita, só podemos lançar hipóteses, mas, cuidado, a superficialidade de Jeanne preserva-a numa ambiguidade prolongada, ou até mesmo perpétua, e essas hipóteses vão dizer mais sobre as nossas capacidades de leitura do que sobre a personagem. Qualquer texto sobre Jeanne Dielman sofre de um efeito de reflexão e vira-se contra nós.

Em rigor, o que o filme nos dá e de forma exemplar, é acção (convém não esquecer que estamos perante um verdadeiro filme de acção4): todos esses trabalhos domésticos realizados perante a câmara são menosprezados e invisíveis no mundo e, apesar de se erguerem como uma parede de sustentação da comunidade, não levam quem os executa a lado nenhum. Se proporcionam alguma coisa é, pelo contrário, uma espécie de afastamento ou anulação. Talvez seja isso que Jeanne procura, mas nunca o conseguiremos provar. Ela está encurralada dentro de um sistema repetitivo que a mantém viva, dia após dia, e a protege sabe-se lá de quê — é ao mesmo tempo vítima e carrasco. Escapa-nos para além do último plano.

Sabemos que o filme surgiu a Chantal uma noite como uma visão e depois ela escreveu-o em quinze dias como se fosse um roman nouveau, especificando cada gesto, todos os gestos. Chantal sempre observou essas tarefas domésticas na sua família de tantas mulheres e aprendeu-as de cor, só assim se explica a minúcia da cena em que Jeanne prepara os panados seguindo uma sequência perfeita de farinha, ovo e pão ralado: há uma economia e um rigor dos movimentos que são comuns às grandes descrições históricas, só que neste filme o espaço em causa é uma pequena cozinha de azulejos amarelos, um sítio interior, menor ou menorizado, que nunca tinha sido filmado assim, como se fosse o centro do mundo. O que reconhecemos na tela não são referências cinéfilas — que as há, claro, subtis e estimulantes5 —, mas a linguagem material dos corpos das nossas mães, tias, avós. E então, talvez seja por isso que o filme nos toca de um jeito extravagante e comove sem percebermos bem porquê.

Na verdade, Chantal reuniu toda uma série de fantasmas que nos cercam e, antes de mais, os seus próprios fantasmas: Jeanne Dielman é uma espécie de carta de amor para Natalia Akerman. Um amor denso, perturbador, claustrofóbico. Ao replicar os rituais domésticos (que substituíram os rituais judeus, também isso Chantal esclarece e não o podemos esquecer nunca) com tanta intensidade, alguma coisa acontece. Como uma provocação, Chantal tenta enquadrar aquilo que não se consegue cingir, contrapõe ruídos vulgares6 ao silêncio da mãe sobre o passado. E o espanto final é extraordinário pois Chantal limitou-se a seguir intuições e essas intuições devolveram um sobressalto. Através do filme que ela escreveu como uma corrente passa não só o silêncio de Natalia, mas também uma vibração sombria que vem dos campos, dessa disciplina severa que garante a sobrevivência onde não é possível viver, e não é nem palavra nem imagem, apenas um bafo gélido que atravessa as brechas do filme e acompanha a queda progressiva de Jeanne.





1. Em Autour de Jeanne Dielman, de Sami Frey, sobre a rodagem do filme de Chantal Akerman. 
2. Creio que é mais disto que se trata, dada a secura dos diálogos, a câmara estática, distante e frontal, a paleta de cores (com dominância de castanho avermelhado e azul entre o cinzento e o verde, como explica Mary Jo Lakeland em The Color of Jeanne Dielman), a duração estendida dos planos e das acções.
3. Convém sublinhar mais uma vez que não se trata de um filme realista, estamos sempre cientes da câmara e de todo o dispositivo artístico e o modo de representar não pretende ser natural mas, digamos assim, um bocado sonâmbulo?
4. No sentido bressoniano, conforme é descrito neste diálogo de Au hazard Balthazar:
— Uma pintura cerebral, uma pintura de pensamento? 
 — Uma pintura de acção, action painting.
5. A presença de Hitchcock sente-se no clima de suspensão que atravessa todo o filme e também no rigor formal (veja-se o plano de entrada no prédio quando Jeanne passa pela porta quadriculada intermédia depois das caixas de correio que fica entreaberta e continua a afastar-se da câmara, entra no elevador e corre as duas portas de grades do elevador) ou a luz néon azul da rua que entra na sala de jantar e lembra o néon verde de Vertigo ou até mesmo uma certa familiaridade com Marnie? Bresson é outra referência visível na arte de enquadrar, deixar fora de campo, transformar os actores em modelos e acima de tudo aproximar coisas que nunca foram aproximadas. Podemos acrescentar Godard como agente decisivo. E o grupo de Nova Iorque: Michael Snow, Stan Brakhage, Jonas Mekas, Yvonne Rainer e Andy Warhol, que lhe mostraram que não é preciso uma história para se fazer um filme. Chantal assimilou tudo isso e afastou-se para um espaço só seu.
6. Tirando algumas frases de circunstância, a música do rádio depois do jantar, e os diálogos assombrosos de Jeanne com o filho antes dele se deitar, o som é feito sobretudo de silêncios e ruídos: interruptores da luz que se ligam e desligam, portas que se abrem e fecham, tacões, cabides, o movimento da rua. Isolados das palavras, esses barulhos quotidianos fazem a vez de um metrónomo e marcam o ritmo do filme — um coração que bate.

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