Traduzido para alemão por Paul Celan, o Breviário de Decomposição foi publicado pela Rowohlt em 1953. Quando foi reeditado pela Klett-Cotta, há oito anos, o director da Akzente pediu-me para o apresentar aos leitores da revista. É esta a origem deste texto.
Ao reler este livro, que remonta a mais de trinta anos, procuro reconhecer a personagem que fui e que se esgueira, que me escapa, pelo menos em parte. Os meus deuses eram Shakespeare e Shelley. Continuo a ler o primeiro; o segundo, raramente. Cito-o para indicar por que tipo de poesia estava intoxicado. O lirismo desenfreado combinava com as minhas disposições: infelizmente apercebo-me dos seus vestígios em todos os meus exercícios dessa época. Quem consegue ainda ler um poema como Epipsychidion? Enfim, eu lia-o com prazer. O platonismo histérico de Shelley repugna-me e à efusão, seja qual for a forma que apresente, prefiro agora a concisão, o rigor, a frieza deliberada. No essencial, a minha visão das coisas não mudou; o que sem dúvida mudou foi o tom. O fundamental de um pensamento raramente muda; em contrapartida, o que sofre uma metamorfose é o estilo, a aparência, o ritmo. Ao envelhecer, dei-me conta que a poesia era-me cada vez menos necessária: estaria o gosto da poesia ligado a um excesso de vitalidade? Sinto cada vez mais — a fadiga deve ter muito a ver com isso — uma inclinação pela secura, pelo laconismo, em detrimento da explosão. Ora nem mais, o Breviário era uma explosão. Ao escrevê-lo tinha a impressão de escapar a um sentimento de opressão, que não conseguiria aguentar por muito tempo: precisava de respirar, precisava de rebentar. Sentia a necessidade de uma explicação decisiva, não tanto para os homens, mas para a existência enquanto tal, teria gostado de a desafiar para um combate individual, nem que fosse para ver quem venceria. Para ser franco, tinha quase a certeza que levaria a melhor, que era impossível ela triunfar. Encurralá-la, empurrá-la para os seus últimos redutos, reduzi-la a nada com raciocínios frenéticos e entoações a lembrar Macbeth ou Kirilov — era essa a minha ambição, o meu propósito, o meu sonho, o programa de todos os meus instantes. Um dos primeiros capítulos intitula-se O Anti-profeta. De facto, eu reagia como profeta, atribuía a mim mesmo uma missão, subversiva se quisermos, mas ainda assim missão. Ao atacar os profetas, atacava-me a mim mesmo e a... Deus, de acordo com o meu princípio dessa altura segundo o qual só nos devíamos ocupar d’Ele e de nós mesmos. Daí o tom uniformemente violento de um ultimato (não sucinto como devia ser, mas palavroso, difuso, insistente), de uma intimação dirigida ao céu e à terra, a Deus e aos ersatz de Deus, em suma, a tudo. O arrebatamento e a loucura da minha juventude, assim como uma voluptuosidade irreprimível em negar, atingem o seu auge no furor desesperado dessas páginas onde em vão se procura um pouco de modéstia, de reflexão serena e resignada, de aceitação e de trégua, de fatalismo sorridente. O que sempre me atraiu na negação é o poder de se substituir a tudo e a todos, de ser uma espécie de demiurgo, de dispor do mundo, como se tivéssemos colaborado no seu advento e por isso tivéssemos o direito, até mesmo o dever, de precipitar a sua ruína. A destruição, consequência imediata do espírito de negação, corresponde a um instinto profundo, a um tipo de inveja que todos certamente sentem no fundo de si mesmo em relação ao primeiro dos seres, à sua posição e à ideia que representa e simboliza. Apesar de estudar muito os místicos, no meu foro íntimo estive sempre do lado do Demónio: não o podendo igualar em poder, tentei superá-lo pelo menos em insolência, amargura, arbitrariedade e capricho.
Depois da saída do Breviário em espanhol, dois estudantes andaluzes perguntaram-me se era possível viver sem «fundamentación» Respondi-lhes que era verdade que não encontrei base sólida em parte alguma e que mesmo assim consegui durar, pois, com o passar dos anos, acostumamo-nos a tudo, até mesmo à vertigem. E depois não nos vigiamos e questionamos constantemente, uma vez que a lucidez absoluta é incompatível com a respiração. Se estivéssemos sempre conscientes do que sabemos, se, por exemplo, o sentimento da falta de fundamento fosse ao mesmo tempo contínuo e intenso, matar-nos-íamos ou deixar-nos-íamos cair na idiotice. Existimos graças aos momentos em que esquecemos certas verdades, e isso porque nesses intervalos acumulamos energia, o que permite enfrentar essas tais verdades. Quando me desprezo, para recuperar a confiança, digo a mim mesmo que afinal consegui manter-me no ser ou num simulacro do ser, com uma percepção das coisas que poucos poderiam ter suportado. Vários jovens em França disseram-me que o capítulo que mais os prendeu foi O Autómato, essa quintessência do intolerável. À minha maneira, devo ser um lutador, já que não sucumbi às minhas ruminações.
Os dois estudantes também me perguntaram porque é que deixei de escrever, de publicar.
Nem toda a gente tem a sorte de morrer jovem, foi minha resposta. O meu primeiro livro com título espalhafatoso — Nos Cumes do Desespero — escrevi-o em romeno aos vinte e um anos, prometendo a mim mesmo nunca mais repetir a façanha. Depois fiz outro, seguido da mesma promessa. A comédia repetiu-se por mais de quarenta anos. Porquê? Porque escrever, por pouco que fosse, ajudou-me a passar de um ano para o outro, as obsessões expressas ficavam mais fracas e, em parte, eram superadas. Criar é um alívio extraordinário. E publicar não o é menos. Um livro que surge é a tua vida ou uma parte da tua vida que se torna exterior a ti, que não te pertence, que deixou de te importunar. A expressão diminui-te, empobrece-te, alivia-te do peso de ti mesmo, a expressão é perda de substância e libertação. Esvazia-te, portanto salva-te, priva-te de um estorvo excessivo. Quando se odeia alguém a ponto de o querer liquidar, o melhor é pegar numa folha de papel e escrever várias vezes que X. é um estafermo, um crápula, um monstro, e apercebemo-nos logo que o odiamos menos e quase já nem pensamos em vingança. Foi mais ou menos isso que fiz em relação a mim mesmo e ao mundo. Extraí o Breviário das minhas entranhas para insultar a vida e para me insultar a mim mesmo. O resultado? Suportei-me melhor, assim como suportei melhor a vida. Cada um trata de si como pode.
A primeira versão do livro foi redigida muito depressa em 1947 e chamava-se «Exercícios Negativos». Mostrei-o a um amigo que o devolveu passados uns dias e disse: «Isto tem de ser reescrito na íntegra.» Levei muito a mal o seu conselho mas, felizmente, segui-o. Na verdade, escrevi o livro quatro vezes, porque não queria a preço nenhum que fosse considerado como obra de um tipo vindo sabe-se lá de onde. A minha ambição era nada mais nada menos do que rivalizar com os indígenas. De onde é que podia advir tamanha presunção? Os meus pais, que sabiam apenas romeno e húngaro e um pouco de alemão, só conheciam as palavras francesas bonjour e merci. Era o que acontecia com quase todos os transilvanos. Quando, em 1929, fui para Bucareste prosseguir uns vagos estudos, constatei que a maioria dos intelectuais de lá falava francês fluentemente; daí que tenha surgido em mim, que o lia mais ou menos, uma raiva que ia durar muito tempo e que dura ainda sob outra forma, já que, quando cheguei a Paris, não consegui nunca livrar-me do meu sotaque valáquio. Se não consigo falar como os autóctones, pelo menos tentarei escrever como eles, deve ter sido este o meu raciocínio inconsciente, senão como posso explicar a minha obstinação em querer fazer tão bem como eles e até mesmo, presunção insana, melhor do que eles?
Os esforços que fazemos para nos afirmarmos, para nos compararmos com os nossos semelhantes e, se possível, para os superarmos, têm razões vis, inconfessáveis e, portanto, potentes. As resoluções nobres, pelo contrário, decorrentes de um desejo de apagamento, carecem inevitavelmente de vigor, e abandonamo-las depressa com ou sem arrependimento. Tudo em que nos excedemos vem de uma procedência obscura e suspeita; na verdade, das nossas profundezas.
E ainda isto: devia ter escolhido outra língua qualquer, menos o francês, porque não me dou bem com o seu ar distinto, está nos antípodas da minha natureza, dos meus excessos, do meu verdadeiro eu e do meu género de misérias. Pela sua rigidez, pelo somatório de tensões elegantes que representa, o francês parece-me um exercício de ascetismo,ou melhor, uma mistura de camisa-de-força e salão. Ora, é precisamente por causa desta incompatibilidade que me afeiçoei a ele, a ponto de exultar quando o grande estudioso nova-iorquino Erwin Chargaff (nascido, como Paul Celan, em Czernowitz) me confidenciou um dia que para ele não merecia existir senão o que era expresso em francês... Hoje que esta língua está em pleno declínio, o que mais me entristece é constatar que os franceses não parecem sofrer com isso. E sou eu, o refugo dos Balcãs, que lamento vê-la a afundar. Pois bem, hei-de afundar, inconsolável, com ela!
Exercícios de Admiração – Ensaios e Retratos, de Emil Cioran, Gallimard, 1986.
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