Tirando os problemas técnicos (Serralves não tem capacidade de rede para projectar ficheiros sem saltos no som?) e o final abrupto sem qualquer tipo de diálogo, a conferência de Nicole Brenez sobre as conferências de Godard no Conservatório de Arte Cinematográfica em Montreal e o subsequente livro Introdução a uma Verdadeira História do Cinema foi muito interessante. Nicole ofereceu-nos o resultados das suas minuciosas pesquisas sem qualquer tipo de afectação — parecia uma jovem detective excitada com as suas descobertas dotada de um discurso amoroso e inteligente que agarra logo.
Em relação à edição do livro (e sabemos como os livros são cruciais na vida do cineasta-historiador), Nicole contou dois factos importantes. Godard escolheu uma pequena editora (éditions Albatros, fundada em 1970 sobre a égide da palavra «liberdade») e não, por exemplo, os Cahiers du Cinéma apesar de na altura até estar de boas relações com a sua equipa editorial. Houve uma primeira tiragem (em 1980: 2000 exemplares, 265 páginas) que saiu errada porque, para manter alguma qualidade fotográfica, alguém decidiu imprimir as imagens com o máximo de qualidade em cadernos de papel estucado. Godard não gostou do resultado e preparou outra tiragem com a ajuda de Joël Farges (em 1985: 4000 exemplares, 338 páginas), onde as imagens já não são fotogramas dos filmes, mas criações gráficas: aparecem em página inteira no mesmo tipo de papel do texto (nenhuma distinção, nenhuma distância, entre imagens e palavras), sem margens nem legendas e a maior parte delas muito ampliadas e fotocopiadas, com demasiado contraste e pouca definição — nem sempre se percebe de que filmes são, tal é o grau de abstracção. Como se fossem restos ou vestígios de uma civilização perdida.
Nicole afirmou que com este gesto, e apesar de ser um grande leitor de Walter Benjamin, parece que Godard vai contra a teoria do filósofo sobre a perda da aura da obra de arte na era da reprodução, pois com o seu esforço de apagar/escrever por cima, o cineasta conseguiu manter a aura de objecto único e intangível nestas imagens em segunda mão.
Tenho andado a pensar no assunto e não concordo com esta interpretação. Acho que não há oposição a Benjamin; pelo contrário, o que Godard queria (e vai querer sempre daqui para a frente) era precisamente imagens materiais e tangíveis, destituídas de aura, foi por isso que as submeteu a uma carga pesadíssima de reprodução. E é o que encontramos não nos Tomos II e III que nunca existiram (apesar de anunciados na página 6), mas nas História(s) do Cinema.
Em termos históricos, agora desejamos aquilo que podemos ter se vendermos a nossa alma (é esta a grande vitória do capitalismo ainda vigente). Vivemos num mundo de acordo com os nossos desejos. Logo, Godard não se contrapõe a Benjamin, o que ele faz é levar a teoria até ao limite: imagens não sublimes, gastas, granuladas, planas, pois. Não para serem adoradas, mas para abrirem caminho. Para onde? Ah, isso ainda não se sabe. Cabe-nos a nós prosseguir o trabalho de Godard. Começar a pensar com as mãos? Entrar na selva?
[Godard trabalha não só com fórmulas, mas com conjuntos de fórmulas — núcleos de grande força gravitacional. As imagens sem aura, por exemplo, podem estar junto à frase «pas une image juste, juste une image». Perto do núcleo que diz que um filme deve sair de uma notícia de jornal e as citações são documentos e um engarrafamento nas ruas de Paris... Temos de pensar em Godard como um historiador, um pouco louco, um pouco visionário, que vira tudo ao contrário, que vai aos extremos, que segue a lei da boa — e da má — vizinhança e a crença que tudo está vivo e morto ao mesmo tempo. Para entender Godard não basta pensar, é preciso outro movimento.
Comentários