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Consumições



No primeiro diálogo entre Adelino e Júlia — ela está a apanhar agulhas dos pinheiros com a filha mais velha junto à praia do Furadouro, mas parece que estão no Japão antigo a contas com as eternas agruras da vida —, as palavras saem como lava de um vulcão. A determinada altura, Júlia atira: não quero andar mais na boca do povobastam as consumições que já tenho.

Consumições era uma palavra da minha avó e, talvez, dessa linhagem de mulheres pobres que se desunhavam para pôr alguma comida na mesa, vestir e criar os filhos, aturar os maridos, tratar da casa e dos velhos. Um trabalho colossal e invisível. Apesar das condições de vida terem melhorado um pouco depois do 25 de abril, a minha avó nunca deixou de se afligir com os desaires iminentes, com o medo das doenças ou de ficar numa situação desprevenida, com qualquer coisa incerta. As consumições não a largavam — uma memória cravada de dor e tristeza, como se Júlia continuasse a acartar areia ou agulhas dentro de si.

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