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Eu sou uma colher no parapeito da janela


[Breve estudo de literatura comparada]

John Fante acelera a capacidade de levar tudo pela frente em Estrada para Los Angeles*: agora são dois (e um deles, completamente destravado) a escrever dentro do livro — é o chamado efeito estéreo literário. 

«Elas tinham-me deixado um bilhete em cima da mesa. Dizia que tinham ido a casa do tio Frank e que eu tinha comida na despensa para o pequeno-almoço. Decidi ir comer ao Sítio do Jim, pois ainda me sobrava algum dinheiro. Atravessei o recreio da escola que ficava do outro lado da rua e pus-me a caminho do Sítio do Jim. Pedi uns ovos com fiambre. Enquanto comia, o Jim ia falando. 
– Tu fartas-te de ler – disse ele. – Já tentaste escrever um livro? 
Foi o suficiente. Daí em diante, eu queria ser escritor. 
– Estou a escrever um livro neste preciso momento – disse eu. 
Ele quis saber que tipo de livro. 
A minha prosa não é para vender – disse-lhe eu. – Eu escrevo para a posteridade. 
– Não sabia – disse ele. – O que escreves? Contos? Ou ficção normal? 
– As duas coisas. Sou ambidestro. 
– Ah, não fazia ideia. 
Fui até à outra ponta do estabelecimento e comprei um lápis e um caderno. Ele quis saber o que eu estava a escrever naquele instante. 
– Nada – disse eu. – Estou só a tirar notas soltas para um futuro trabalho sobre o comércio externo. Estranhamente, o tema interessa-me, é uma espécie de passatempo dinâmico que eu desenvolvi.» 

Isto acontece nas páginas 32 e 33. Só com um lápis e um caderno, Bandini atira-se de cabeça para uma carreira de escritor ambidestro. Depois acontecem muitas coisas: alguns empregos precários; umas idas à biblioteca; o ataque aos caranguejos; muitas citações maradas de Zaratustra; uns exemplares de Artistas e Modelos; discussões constante com a mãe, a irmã, e todos de uma maneira geral; o emprego malcheiroso na conserveira; e por aí fora. 

Já na parte final do livro, dá-lhe um amoque. Depois estilhaçar o polegar, persegue a mulher do casaco roxo enquanto vai escrevendo romances de cordel na cabeça. Até que um fósforo entra em cena. Ah, mas que fósforo! 

«Na esquina seguinte, a mulher parou para riscar um fósforo na parede do bando. Depois acendeu um cigarro. O fumo ficou suspenso no ar quieto, como balões azuis distorcidos. Elevei-me sobre os dedos dos pés e acelerei. Ao chegar a essas nuvens imóveis, ergui-me em bicos de pés e inalei-as. O fumo do cigarro dela! Ah. 
Eu sabia onde o fósforo dela caíra. Mais uns passos, e apanhei-o. Ai estava ele, na palma da minha mão. Um fósforo extraordinário. Não possuía uma diferença perceptível em relação aos outros fósforos e, no entanto, era um fósforo extraordinário. Ardera até meio, esse fósforo de pinho com um aroma adocicado, lindíssimo como uma peça de ouro raro. Beijei-o. 
– Fósforo – disse eu. – Amo-te. O teu nome é Henrietta. Amo o teu corpo e a tua alma. 
Meti-o na boca e comecei a mastigá-lo. O carvão tinha sabor de iguaria, um pinho agridoce, estaladiço e suculento. Delicioso, arrebatador. O fósforo que ela segurara com os seus dedos. Henrietta. O melhor fósforo que eu ja comi, senhora. Permita que a congratule.» 

Depois de mais umas piruetas físicas e literárias, Bandini chega a casa e, preso à imagem e ao desejo da mulher do casaco roxo, põe-se a escrever uma obra memorável de um jacto . 

«Amor Eterno 
ou 
A Mulher Que Um Homem Ama 
ou 
Omnia Vincit Amor 
Por Arturo Gabriel Bardini 

Três títulos. 
Maravilhoso! Um início soberbo. Três títulos, assim de repente! Fantástico! Incrível! Um génio! Um génio, sem dúvidas! E aquele nome. Ah, era magnífico. Arturo Gabriel Bandini. Un nome a considerar no longo rol dos imortais: um nome para a eternidade. Arturo Gabriel Bandini. Um nome ainda mais sonante do que Dante Gabriel Rossetti. Também ele italiano. Pertencia à minha raça.» 

Avança sem rédeas, a cada frase lança adjectivos sem cerimónia. Não é um escritor qualquer, Bandini ergue-se também como uma personagem enorme adorada por todos. 

«Ali estava ele, descendente de uma família abastada, famosa, poderosa, altiloquente, um homem galante, com o mundo aos seus pés e a vasta, poderosa, fantástica fortuna de Banning à sua disposição; e, no entanto ali de pé, algo perturbava Arthur Banning, alto, moreno, belo, bronzeado pelos raios do Velho Héllio: e aquilo que o perturbava era que, embora tivesse viajado por muitas terras, mares e rios, também, e embora tivesse feito amor e tivesse tido ligações amorosas, das quais todo o mundo sabia, através da imprensa, essa imprensa poderosa, incomodativa, ele, Arthur Banning, esse descendente de boas famílias, estava infeliz e, embora rico, famoso, poderoso, sentia-se sozinho e encarcerado no castelo pelo amor. E ali, parado de forma tão incisiva no convés do seu Larchmont VIII, o mais esplêndido, o mais belo, o mais portentoso iate alguma vez construído, perguntava-se onde estaria a rapariga dos seus sonhos, se iria conhecê-la em breve, se ela, a rapariga dos seus sonhos, se compararia à rapariga dos seus sonhos de infância, quando era criança e sonhava nas margens do rio Potomac, na propriedade fabulosamente rica, abastada, do seu pai, ou se seria pobre?» 

O homem mais magnânimo de todos os tempos à face da terra; as mulheres estremecem ao ouvir o seu nome, o mundo fica em suspenso com as suas declarações. E Bandini corre. O lápis não pára. Forma-se uma bolha no dedo. Doze páginas, um colosso. 

«Escrevi tudo de uma penada. Chegou tão depressa que nem tive tempo para traçar os tês nem de pontuar os is. Era agora o momento de respirar um pouco, e a oportunidade para reler o que tinha escrito. Assim fiz. 
Ah! 
Que maravilha! Soberbo! Nunca tinha lido nada igual na minha vida. Fantástico. Levantei-me, cuspi nas mãos e esfreguei-as uma na outra. 
Vamos lá! Quem quer lutar contra mim? Lutarei contra todos os idiotas desta sala. Sou capaz de dar um bigode ao mundo inteiro. Aquela sensação não se assemelhava a qualquer outra coisa à face da terra. Eu era um fantasma. Flutuava e voava e ria e flutuava. Era um exagero. Quem poderia sonhar com aquilo? Que eu fosse capaz de escrever daquela forma. Meu Deus! Espantoso! Assomei à janela e espreitei. A bruma começava a descer. Mas que bela bruma. Olha para aquela bela bruma. Lancei-lhe beijos. Afaguei-a com a mão. Querida Bruma, tu és uma rapariga de vestido branco e eu sou uma colher no parapeito da janela. (…)» 

O ímpeto continua, claro. Mas aqui é o sítio certo para acabar a intervenção. Para além do lápis, do ritmo desenfreado, da forma desvairada de animar os objectos, de levar as convenções muito para além do que aceitável, da enorme alegria que nos provoca sem sabermos bem porquê: a colher! A prova material que o liga irrevogavelmente a Walser. Ah, pois é!


Estrada para Los Angeles, de John Fante. Tradução de Vasco Gato. Alfaguara. Outubro 2013.




* Estrada para Los Angeles foi escrito antes de A Primavera há-de chegar, Bandini, mas, em termos sequenciais, é a segunda parte da saga de Artur Bandini: ele tem 18 anos e quer ser escritor.

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