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Mensagens

Paulino Viota: (...) seria necessária uma sintaxe feita de condicionais e conjuntivos para dar conta desse cinema espanhol onde o mais importante seria o «não-ser». Porque o cinema que fizemos, pois sim — mas o cinema que não fizemos, ah!

Impressão de realidade

Após a leitura da primeira cena, um actor levanta a hipótese de o Fantasma consistir num simples truque de prestidigitação. O «prodígio» seria, na verdade, alguém disfarçado de fantasma do velho rei. Alguém interessado em forçar Hamlet a agir e a assassinar Claudius. Quem?

Selfie XXII

Sinto sempre uma grande alegria quando um cão me reconhece apesar de nunca nos termos encontrado antes. Cada um desenvolve a vaidade que lhe convém.

O destino do Fantasma

O fantasma do velho rei da Dinamarca começa a assombrar os muros de Elsinore. Para neutralizar o espectro e dar-lhe sepultura, é preciso um sacrifício: o jovem Hamlet deve vingar-se, assassinando o novo rei. Enquanto não forem cumpridos esses ritos funerários, o espectro continuará a errar por Elsinore. No final, o sacrifício cumpre-se: o rei é morto. Mas nada se sabe sobre o destino do fantasma. Desceu definitivamente ao mundo dos mortos? Ou permanece entre os vivos, assombrando um príncipe após outro, exigindo mais um assassínio, e outro, e outro ainda? Até aos nossos dias. Pensa-se que Shakespeare representou, ele próprio, o papel do Fantasma. Era o único que verdadeiramente lhe assentava.

Espérer, plus d'espérance

Quando vi Le Livre d’image pela primeira vez (2018), achei-o um bocado distante, duro e fugidio; um objecto exigente que se dirigia apenas à cabeça. Na altura não soube, ou não quis, interpretar essa impressão. Mas a exposição do Fabrice Aragno no Palácio Sinel de Cordes (2023) emocionou-me tanto que fiquei baralhada. Ontem percebi o conflito: o filme de Godard é um pensamento em acção que passa a grande velocidade — um comboio-bala que não conseguimos acompanhar, que nos olha do futuro (qual distância brechtiana, qual quê!) A exposição Éloge de l’image – Le Livre d’image , pelo contrário, era uma espécie de acampamento onde nos podíamos sentar e chorar como Mouchette.

La Poursuite (1961)

O primeiro filme de Jean-Claude Biette, rodado em 9,5mm. Cinco ou seis pessoas viram a curta-metragem projectada no ecrã, depois La Poursuite desapareceu. Mais uma para As peças que Faltam , de Henri Lefebvre.

A velha tradição dos ladrões de malas

A história do deputado da extrema-direita que roubava malas lembrou-me um episódio contado por Cioran nos Cadernos : «Gertrud Kantorowicz, ao viajar com todos os inéditos de Simmel, perdeu-os a todos, pois a sua mala foi roubada enquanto ela estava no vagão-restaurante.»  (Tradução de Cristina Fernandes.) Na longa tradição dos ladrões de malas, imagine-se um nazi dos anos 20 ou 30 a abrir, ansioso e malandro, uma mala que acabara de roubar, e a descobrir, desiludido, um monte de gatafunhos sobre sociologia.

Dos jornais XIV

A imagem de um deputado a andar pela Assembleia da República com uma mala gigante cheia de malas mais pequenas é grotesca. Parece Marnie filmada pelos irmãos Marx. Ou um filme marado da Looney Tunes.

Para Anne-Marie Miéville e para mim mesmo

Também podemos pensar nas História(s) do Cinema como cartas de amor (para Mary Meeerson e para Monica Tegelaar, para John Cassavetes e para Glauber Rocha, 
para Armand J. Cauliez e para Santiago Alvarez
, para Michèle Firk e para Nicole Ladmiral, para Gianni Amico e para James Agee
, para Frédéric C. Froeschel e para Nahum Kleiman
, para Michel Delahaye e para Jean Domarchi, para Anne-Marie Miéville e para mim mesmo).

Dos jornais XIII

Luísa Ferreira da Silva tem 65 anos e uma banca de charcutarias. Trabalha no Bolhão desde os 10. “Já a minha avó cozinhava aqui as tripas.” Não contesta a decisão da ASAE. Apenas que essa decisão a obrigue a atravessar o Bolhão com quilos de carnes. “Quem eu critico são as pessoas que não me dão condições para poder cozinhar.” Conta o dia a dia: “Carrego as carnes num carro de mão até às cozinhas, que são no lado oposto ao da minha banca. Tenho de subir escadas até ao andar de cima e até as cozinhas não têm condições. E depois dizem aquelas pessoas que não querem acabar com as tripas. Querem e querem correr connosco”, concluiu, secundada por Fernanda, 76 anos, outra das resistentes. “É cruel o que nos estão a fazer. ”   Luísa descreve:  “ Aqui só cheira a massas a cozer e a queijos derretidos. A estrugido, a fritos nas Air Fryer. Tudo é permitido, menos as nossas tripas. ”

Dormir bem

Nazmul Hazari, imigrante no Porto, diz a um jornalista que em Portugal talvez não se ganhe tanto como noutros países, mas «come-se bem, bebe-se bem, dorme-se bem, vive-se bem e isso é o essencial». É a ideia mais bonita que já li sobre este país: um sítio onde se dorme bem.

Paisagem de arcos flamejantes

Ia escrever que o bairro das Fontaínhas era o Monument Valley de Pedro Costa. Mas depois fiquei com dúvidas: Vanda, Ventura, Vitalina e tantos outros é que são o Monument Valley. Todos eles são filmados como se fossem paisagens (nocturnas, lunares, vulcânicas, submarinas, áridas...). O trabalho de Pedro Costa é misterioso: começa como geógrafo de campo e acaba poeta relutante. 

Swell

Vi They Were Expendable pela primeira vez e sem legendas, por isso estive mais atenta ao que as personagens dizem e fiquei admirada porque a palavra mais repetida neste filme amargo, onde morrem tantos homens e tantos ficam para trás, é swell . Só me faltava esta, encostar John Ford aos «linguístas licenciosos».