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Mensagens

Ler é um luxo

Sylvère Lotringer: Você também salta passagens quando lê os mitos ou as tragédias gregas?  Heiner Müller: Sim, mas li‑os quando era muito jovem. Hanns Eisler disse um dia que Brecht nunca lera O Capital , mas que era sempre capaz de encontrar a frase que lhe era útil. É uma questão de tempo – tempo para viver. Não me resta muito tempo para fazer as coisas que quero fazer. SL: Ler é um luxo. HM: Sim, um luxo enorme. Devorar os textos é mais rápido. Entrevista com Heiner Müller (1988). Disponível aqui.

Dos jornais XIX

Quando o primeiro-ministro Luís Montenegro diz que «não fez nem mais nem menos do que faz qualquer português» , está a colocar-se ao balcão do café central a piscar o olho à portugalidade . Por mais piruetas que as agências de comunicação façam, é esse rosto de chico-esperto que vai ser impresso nos cartazes.

Le Diable Probablement

Só ontem é que descobri que o título do filme de Bresson vem (ou pode vir) do Libreto da Flauta Mágica . Papageno e Monostatos assustam-se um com o outro e exclamam: Hu! das ist der Teufel sicherlich . É apenas um devaneio, mas altera a (minha) forma de ver o filme. Já é outro Bresson.

Dos jornais XVII

Esta imagem de Zelensky na Sala Oval está tão saturada de significados que impressiona e prende a nossa atenção. Ali está o presidente ucraniano, um corpo em linhas rectas — tenso, isolado, de mãos atadas —, a olhar directamente para nós. Com o seu fato discreto de luta (ou luto?), parece um herói rohmeriano perdido num cenário de televisão demasiado dourado e demasiado iluminado (demasiado louco?), impedido de falar, impedido (ele e tanta gente) de levar a sua vida vulgar .

Selfie XXIII

Gostava de me mascarar de sombra: a minha ou, melhor ainda, a sombra-fuso da Ilda.

A coisa de que falais

Hamlet começa de noite. O fantasma do rei aparece, exigindo vingança. A aparição repete-se, uma e outra vez. «A coisa de que falais apareceu outra vez esta noite?» Sim, nas rádios, nos jornais, nas televisões, em toda a parte. Todas as noites, a toda a hora, onde quer que exista um ecrã, a «coisa» aparece, impelindo-nos à vingança e à guerra «pelo céu e pela terra» . A História é teimosa, não dá tréguas.

O sistema das canções

A música é um dos poderes máximos de Ford, talvez a chave fundamental. É possível que o seu desejo principal tenha sido converter o cinema em música, fazer filmes que se podem justificar pelo desenvolvimento musical, sem necessidade de mais nada. Creio que isto é verdade, pelo menos durante os prodigiosos anos da Argosy (incluindo Stagecoach ). Depois, talvez se tenha interessado ou viu-se obrigado a interessar-se por outras coisas.  Nesse sentido,  Fort Apache  é provavelmente a sua obra maior e bastaria este breve 1º acto para o demonstrar. Há ritmo até no bater de botas dos sargentos quando se põem em sentido perante O’Rourke na noite da festa. A música em Fort Apache também é o silêncio; o silêncio insólito e ominoso da carga, «formada a quatro», dos soldados do regimento quando o corneteiro é o primeiro a cair. Caso único entre as numerosas cargas de cavaleiros na obra de Ford, que são sempre acompanhadas pelo característico toque de clarim. No filme anterior, The F...

É só um intervalo entre guerras

«O resto é silêncio», diz Hamlet antes de morrer. São as suas últimas palavras. Mas o que resta não é silêncio, mas o barulho mudo da próxima guerra a aproximar-se. «Como muitas vezes antes da tempestade vemos/ Um silêncio nos céus, e a terra em baixo/ Tão muda como a morte./ Logo o trovão terrível rasga a região.»

Música das esferas

O género em John Ford é um conceito que se desdobra. Rio Grande começa como um western de guerras, reconciliações e muito pó, mas acaba por se revelar um magnífico musical. A música entra em cena como uma coisa material do dia-a-dia que afecta primeiro as personagens e depois o nosso corpo. Há uma palavra para isso.

A política do medo

À medida que o mundo se desconcerta e a extrema-direita se instala no poder ou se aproxima dele, o tempo parece empurrar-nos rapidamente para as grandes tragédias. Nos últimos dias, um pouco por toda a Baixa, dezenas de cartazes do Dia Internacional das Mulheres apareceram riscados e apagados com tinta preta. «Tem cuidado, Ofélia, tem cuidado/ E mantém-te na retaguarda do teu afecto,/ Abrigada dos projécteis e afrontas do desejo», diz Laertes à irmã. Ou melhor, Laertes ordena. Ele é um homem, viril e experimentado; Ofélia é apenas uma mulher, pura e inocente. E o macho conclui: «Toma por isso cuidado; a melhor política é o medo.» Os velhos textos não nos salvam, mas mostram o mundo sem paninhos quentes. Estamos avisados.

Dos jornais XVI

As políticas de responsabilidade social são o cúmulo da hipocrisia empresarial. Concebidas pelos gabinetes de marketing, o seu objectivo é transformar uma ideia vazia num grande feito. Hoje, no metro vi uns cartazes de recrutamento do Auchan. Criaram uma narrativa de sucesso plastificada (o actual CEO começou a sua carreira como estagiário) e chaparam-lhe a palavra respect em cima. Em vez de contar histórias indecentes, deviam era  tratar os trabalhadores com justiça .

A Ratoeira

Um balão vermelho com a forma de um coração, talvez oferecido no dia dos namorados, prendeu-se nos cabos de telefone, na Praça da República. Quando o vento sopra, parece um bicho desesperado a tentar escapar de uma armadilha. «Como se chama a peça?», pergunta o Rei. «A Ratoeira – que tropológico!», responde Hamlet .

Il est mort le soleil

Todos me dizem que No Quarto de Vanda é muito duro. Como se essa constatação fosse uma muralha. Percebo que as circunstâncias (a droga, a pobreza, a destruição do bairro) são extremas, mas o filme tem também uma doçura — ora triste, ora cómica — que se infiltra e altera o ritmo. Talvez não se dê por ela da primeira vez, talvez seja necessário dar tempo ao tempo. A minha relação com o filme, confesso, é um bocado esquisita, quer dizer, não o respeito como um objecto íntegro (o que vai muito contra as minhas regras). Às vezes vejo apenas uma cena, ouço uma conversa (os iogurtes de morango, o mês de maio com Bach em fundo,...) alguns sons (pássaros, a televisão ao longe, marteladas, tijolos e vidros a cair,...), como se fosse um filme de fragmentos arqueológicos. Mas o enquadramento constante , o que prevalece, é o apogeu e fim da adolescência, esses anos grandiosos em que temos um território que nos pertence por completo: o quarto é o nosso domínio, onde fazemos e dizemos o que que...

A sorte

«A sorte é tudo. Os acontecimentos tecem-se como as peças de teatro, e representam-se da mesma maneira. A única diferença é que não há ensaios; nem o autor nem os atores precisam deles. Levantado o pano, começa a representação, e todos sabem os papéis sem os terem lido. A sorte é o ponto.» Machado de Assis, 30 de Dezembro de 1894.

Sem pressa

Há um músico de rua que costuma estar, de manhã, no Miradouro da Vitória. Ouço-o da minha sala de trabalho. Não tem boa voz. Mas apurou uma técnica: alonga as canções até ao limite – versões de temas pop-rock famosos –, como se esticasse um elástico ao máximo e o conservasse assim, em absoluta contenção. Uma nota após outra, lentíssimo. Tão lento que, em vez de “cantar”, “diz” as letras. Diz, porém, como se as cantasse. A técnica musical do tipo exige uma atenção e um tempo que são o contrário do ritmo acelerado do turismo, dos vários turismos. «O tempo de sem pressa contarmos até cem.»