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Mensagens

Explicações

Numa conversa com um amigo, que tenta explicar, pela milionésima vez, a ascensão da extrema-direita com mapas, números e deduções «lógicas», irrito-me. Identificar o monstro, sentá-lo no laboratório da politologia e observar-lhe o ranho ao microscópio, não me dá alívio nem esperança. Pelo contrário. Desculpa, amigo. Não há ninguém neste mundo que não conheça bem o monstro. Basta olharmo-nos ao espelho.

Dos jornais XXVI

Do cinema

 
O nacionalismo é um pecado do espírito. Pertencer a um povo não tem um significado profundo (excepto, talvez, para os Judeus). A única comunidade verdadeira é aquela que se funda na «família espiritual», nem nacional nem ideológica. Só me sinto solidário com quem me compreende e que eu compreendo, com quem acredita em certos valores inacessíveis às multidões. Tudo o resto é mentira. Um povo é uma realidade, sem dúvida; uma realidade histórica e não essencial. Quando penso na efervescência da minha juventude por causa da minha tribo! Que loucura, meu Deus! Temos de nos libertar das nossas origens, ou pelo menos esquecê-las. Tenho tendência a voltar a elas, sem dúvida por masoquismo, por gosto da servidão, das «grilhetas», da humilhação. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Próximas gerações

Perante o risco de desaparecer, em resultado do aumento do nível do mar, Tuvalu, o pequeno país da Ocêania, decidiu tornar-se «a primeira nação digital do mundo». Para isso, tem em curso um «projecto de digitalização total do país e de preservação de uma réplica no metaverso». «No pior dos cenários», diz o ministro das Alterações Climáticas, «pelo menos digitalizamos os nossos valores, que queremos passar às próximas gerações». Costuma dizer-se que a realidade ultrapassa a ficção. Mas a ficção acabou. Tudo é real: o imaginável e o inimaginável, o pensável e o impensável. A realidade só ultrapassa a realidade.

China my China

21 de Junho  Ontem disse à Doreen que o governo devia pôr à disposição da população uma sala ou um edifício onde as pessoas se pudessem encontrar, conversar, fazer discursos, desabafar. Ela respondeu-me que as mulheres na China antiga, quando estavam com raiva ou tinham alguma aflição, subiam a pequenos estrados, montados especialmente para elas na rua, e ali davam rédea solta à sua fúria ou à sua tristeza. Essa «prática» parece-me muito mais eficaz do que o método psicanalítico ou o confessionário. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

O último negativo

Gaza

Nunca compreendi a leviandade dos alemães e do mundo perante o crescimento do estado nazi, a aceitação da caça e extermínio de judeus, ciganos e todos aqueles que não encaixavam na proclamada superioridade física ou ideológica do regime. Por mais que leia, não compreendo como foi possível aceitar a maldita eficiência dos campos de concentração. Mas a história tem recuos espantosos e agora compreendo um pouco, apenas um pouco: não é connosco, não mexemos uma palha, nem sequer temos a curiosidade (ou os remorsos?) de Mr. Klein. Vamos ficar na história como um bando de gente muito indiferente e muito cruel que compactua com o intolerável. Temos um peso enorme às costas.

Filosofia em acção

Na sexta-feira de manhã tivemos formação sobre Inteligência Artificial generativa. Muito deslumbre sem justificação (só têm olhos para o raio da eficiência, quando é o contrário que é preciso) e, para finalizar, a ideia ingénua de que vamos voltar à filosofia e à Grécia antiga (aposto mais no deboche do império romano). Quando saí da sala, disse que no futuro seremos todos filósofos . À tarde encontrei esta notícia . Um belo raccord .

Ir ao mercado

Ouvido no mercado. Duas mulheres velhas e gordas prestes a terminar a conversa. Uma diz à outra: «Para se viver tranquilo, não devemos sair do rame-rame da vida.» Uma manhã destas, fui ao mercado (como todos os dias). Depois de dar três voltas, saí incapaz de me decidir por o que quer que fosse. Nada me tentava, não tinha vontade de nada. Em tudo, a escolha tem sido a minha perdição ao longo da vida. Noutro dia, no mercado, olhei por um instante para uma cabeça de boi cuja pele tinha sido arrancada. Os olhos, ou o que deles restava, deram-me um calafrio terrível. No mercado, uma mulher horrível, com cabeça de águia, começou a gritar comigo porque eu tinha acabado de passar entre ela e a banca. «Você não é educado. Um cavalheiro não deve passar à frente de uma mulher, etc.» Ela insiste. Fraqueza incrível da minha parte, tento justificar-me e enervo-me tanto como a mulherzinha. Nisso, como sempre, sensação de mal-estar físico. Decididamente, só morto alcançarei a indiferença. ...