Ouvido no mercado. Duas mulheres velhas e gordas prestes a terminar a conversa. Uma diz à outra: «Para se viver tranquilo, não devemos sair do rame-rame da vida.»
Uma manhã destas, fui ao mercado (como todos os dias). Depois de dar três voltas, saí incapaz de me decidir por o que quer que fosse. Nada me tentava, não tinha vontade de nada. Em tudo, a escolha tem sido a minha perdição ao longo da vida.
Noutro dia, no mercado, olhei por um instante para uma cabeça de boi cuja pele tinha sido arrancada. Os olhos, ou o que deles restava, deram-me um calafrio terrível.
No mercado, uma mulher horrível, com cabeça de águia, começou a gritar comigo porque eu tinha acabado de passar entre ela e a banca. «Você não é educado. Um cavalheiro não deve passar à frente de uma mulher, etc.» Ela insiste. Fraqueza incrível da minha parte, tento justificar-me e enervo-me tanto como a mulherzinha. Nisso, como sempre, sensação de mal-estar físico. Decididamente, só morto alcançarei a indiferença.
17 de Outubro
Esta manhã, no mercado, uma mulher passou à minha frente sem me pedir autorização. Durante cinco minutos tive de me esforçar para não explodir. As minhas ideias impõem-me boas maneiras. Se seguisse o meu temperamento, armava confusão por todo o lado.
22 de Junho
Fui ao mercado. Esperei meia hora por quatro ovos. Crise de nervos, fúria, estas mulheres tagarelas põem-me fora de mim. Esperei apenas para demonstrar a mim mesmo que era senhor dos meus nervos, que era capaz de me conter e, de facto, aguentei todo aquele mulherio sem gritar. Mas depois, quase que desatei a berrar.
É sempre a mesma história: qualquer esforço que fazemos sobre nós mesmos vira-se contra nós ou nós viramo-nos contra ele. A saúde é dar rédea solta aos seus humores, é ser o que se é.
Ir ao mercado todos os dias, que contacto com a realidade! Se há lugar onde não estamos nas nuvens é aqui!
14 de Maio
Tenho muitas razões para gostar de Cioran, a maior parte nem as compreendo, mas esta é fácil: gosto de um filósofo que vai ao mercado e se irrita.
Hoje de manhã, no mercado, lembrei-me do ditado budista segundo o qual tudo o que comemos está condenado à putrefacção. Acho que o texto é ainda mais claro e diz que a comida toda não passa de podridão.
25 de Maio
No mercado, a ruminar sobre esse «pensamento» do outro dia, que estamos aqui apenas para troçar do universo, que talvez a existência não tenha outro sentido. Pôr-se em questão a si mesmo e ao mundo, e troçar de um e do outro. Depois, troçar da troça e assim por diante.
5 de Novembro
Ataque de nervos na rua. No quiosque dos jornais, quase que discuti com a mulher; no mercado, gritei com a vendedora que, vendo como estava alheado, queria claramente enganar-me. Que horror! Eu sabia que, se saísse de casa, qualquer coisa, fosse o que fosse, haveria de me irritar. E pensar que um dia ambicionei ser o émulo de Buda!
12 de Março
Há pouco, no mercado, observava uma rapariga (mulata?). Havia qualquer coisa de triste, cruel e antigo na sua expressão. E pensei comigo mesmo que a sua cabeça remontava a dois ou três milhões de anos, que estamos todos no fundo de uma antiguidade terrível e é difícil acreditar que os cromossomas não estejam totalmente exaustos! A julgar por mim mesmo, a «vida» durará ainda muito tempo, sem dúvida, mas não tem futuro.
Emil Cioran, Cadernos 1957-1972
Tenho muitas razões para gostar de Cioran, a maior parte nem as compreendo, mas esta é fácil: gosto de um filósofo que vai ao mercado e se irrita.
Comentários
ainda bem que, por vezes, nos oferece umas gotas, que não aplacando a sede, temperam o paladar.
rui