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Mensagens

Glarner Birnbrot

Nos seus diários, Max Frisch escreve que Lenine e Robert Walser conversaram apenas uma vez. Foi em 1917, na Spiegelgasse, em Zurique, em frente a uma pastelaria. Dias antes da Revolução e do regresso de Lenine à Rússia. Walser fez-lhe uma única pergunta: «Também gostas de Glarner Birnbrot ?» Frisch garante que a história é verdadeira.

Admiradores

Joyce e Musil moravam muito perto um do outro em Zurique durante a última guerra; no entanto, não fizeram nenhuma tentativa de se conhecerem, de se encontrarem. Os criadores não comunicam entre si. Precisam de admiradores, não de semelhantes . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Mexer na terra

Leio no jornal que em Santiago do Cacém há um empreendimento para «nómadas digitais» onde os clientes podem «ser tecnológicos, mexer na terra e viver em comunhão com a natureza». Haverá alegoria mais grotesca do que andamos a fazer à terra? Um produto para clientes «tecnológicos» mexerem, esburacarem, violentarem.

Vida luminosa

  –Tu, se fazes o favor, não vais na conversa destes dois ou ainda ficas como eles.

«Porque razão deverá uma pessoa trabalhar, podendo evitá-lo?»

A minha patroa tanto apregoou o uso da inteligência artificial generativa que acabei por aceitar: utilizei o chat gtp para negociar a extinção do meu posto de trabalho. Não foi em vão que li os livros do Cossery. O desemprego é o nosso futuro.

«As nossas mulheres»

Na apresentação da candidatura à Câmara do Porto, o concorrente da «direita democrática» disse: «Nesta terra não se ameaça, não se intimida impunemente as nossas mulheres, as nossas crianças, ou qualquer cidadão, seja nas ruas, nos jardins, ou nas estações de metro. Quem não sabe comportar-se dessa forma, não é bem-vindo!» Ia escrever que é uma declaração repugnante e irresponsável, mas desisti. Certas palavras já não significam nada.

Livros fortificantes

O que não devo aos livros destrutivos, do contra, «ácidos»? Sem eles, já não estaria vivo. É por reacção ao seu veneno, por resistência à sua força nociva, que me fortaleci e me apeguei ao ser. Livros fortificantes , pois despertaram em mim tudo o que os devia negar. Li quase tudo o que é preciso para soçobrar, mas foi precisamente por isso que consegui evitar o naufrágio. Quanto mais «tóxico» é um livro, mais age em mim como um tónico. Só me afirmo pelo que me exclui. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Dos jornais XXVII

Tudo impressiona nas notícias sobre o MAL, mas o que vai ficar na minha memória é a fotografia da faca pousada sobre um naperon bordado .

Novo mundo

Estão 33 ou 34 graus. Turistas japoneses passeiam pela Cordoaria de guarda-chuva aberto, tentando proteger-se do sol. Dezenas de guarda-chuvas, avançando em todas as direcções, como num dia de tempestade. Pousadas nos semáforos, as gaivotas observam este novo mundo, confusas.

Explicações

Numa conversa com um amigo, que tenta explicar, pela milionésima vez, a ascensão da extrema-direita com mapas, números e deduções «lógicas», irrito-me. Identificar o monstro, sentá-lo no laboratório da politologia e observar-lhe o ranho ao microscópio, não me dá alívio nem esperança. Pelo contrário. Desculpa, amigo. Não há ninguém neste mundo que não conheça bem o monstro. Basta olharmo-nos ao espelho.

Dos jornais XXVI

Do cinema

 
O nacionalismo é um pecado do espírito. Pertencer a um povo não tem um significado profundo (excepto, talvez, para os Judeus). A única comunidade verdadeira é aquela que se funda na «família espiritual», nem nacional nem ideológica. Só me sinto solidário com quem me compreende e que eu compreendo, com quem acredita em certos valores inacessíveis às multidões. Tudo o resto é mentira. Um povo é uma realidade, sem dúvida; uma realidade histórica e não essencial. Quando penso na efervescência da minha juventude por causa da minha tribo! Que loucura, meu Deus! Temos de nos libertar das nossas origens, ou pelo menos esquecê-las. Tenho tendência a voltar a elas, sem dúvida por masoquismo, por gosto da servidão, das «grilhetas», da humilhação. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Próximas gerações

Perante o risco de desaparecer, em resultado do aumento do nível do mar, Tuvalu, o pequeno país da Ocêania, decidiu tornar-se «a primeira nação digital do mundo». Para isso, tem em curso um «projecto de digitalização total do país e de preservação de uma réplica no metaverso». «No pior dos cenários», diz o ministro das Alterações Climáticas, «pelo menos digitalizamos os nossos valores, que queremos passar às próximas gerações». Costuma dizer-se que a realidade ultrapassa a ficção. Mas a ficção acabou. Tudo é real: o imaginável e o inimaginável, o pensável e o impensável. A realidade só ultrapassa a realidade.