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Mensagens

Entre parêntesis

Tive de ver várias vezes a cena final de The Horse Soldiers para conseguir traduzir dois parágrafos onde Paulino Viota descreve com minúcia os planos e os movimentos dos actores, principalmente o modo emocionado e contido como Hannah move o braço esquerdo ( a alma nasce da forma do corpo ). Ao fim de algum tempo, apercebi-me que Ford filmou a breve despedida de Marlowe e Hannah entre parêntesis. Uma comoção tremenda que nos afecta ainda mais por ser tão velada.
(...) Translating is always listening, scanning for cadence, texture, influence, weight; the myth of the father is a reminder that Daney listened first.  Close Listening, Christine Pichini, 2025. Sabzian.

Insólito bestiário

Leio no jornal que a Casa do Cinema Manoel de Oliveira inaugura por estes dias uma exposição composta por «um insólito bestiário de bonecos, arte sacra e outra quinquilharia», pertencente a Luis Miguel Cintra. Que extraordinária definição de teatro e cinema: um insólito bestiário de bonecos, arte sacra e outra quinquilharia. Devia constar das respectivas entradas nos dicionários e enciclopédias.

Prestar um favor aos ricos

Sou um vendedor nato: galante, pressuroso, cortês, veloz, lacónico, lesto a decidir, exímio nos cálculos, atento e honesto, mas não honesto ao ponto da estupidez, como talvez possa parecer. Sei baixar os preços quando tenho à minha frente um estudante que não tem onde cair morto e sei subir os preços para assim prestar um favor aos ricos, de quem apenas posso supor que por vezes não sabem o que fazer ao dinheiro. Robert Walser, Os Irmãos Tanner . Tradução de Isabel Castro Silva

Galochas e buraquinhos nas luvas (breve estudo de literatura comparada)

Por razões de trabalho, o Rui anda a ler Robert Walser de uma ponta à outra. No sentido inverso, isto é, para festejar o fim do trabalho assalariado, resolvi atirar-me de novo a John Fante.  Quando o li pela primeira vez, achei que tinha semelhanças com Walser (Fante ou Bandini?), mas nunca estudei o assunto – nem sempre se deve aprofundar as nossas intuições, pois claro! Agora as relações surgem por iniciativa própria: os objectos mais banais ganham vida própria, movimento, diminutivos; a alegria alastra como uma névoa. (Ah, deve ser o efeito da praia atlântica, da areia, do vento, da liberdade.) Provas materiais: «Rosa, a presidente da Sociedade do Santo Nome, a menina dos olhos de toda a gente, cada vez mais próxima, caminhando sobre as pequenas galochas que pareciam dançar de alegria, como se a amassem também.» «Num dos bolsos laterais encontrou um par de pequenas luvas. Estavam bastante gastas, com buracos na ponta do dedos. Oh, que lindos buraquinhos. Beijou-os com ternura. O...

Dos jornais XXIX

A palavra farsa já não serve para explicar o que se passa. Os conceitos de Hegel e Marx ficaram para trás. O presente é uma massa de acontecimentos irracionais. Nada disto é cómico.

Filipe Guerra

Soube há instantes que Filipe Gueŕra faleceu esta madrugada. Não há leitor em Portugal que não tenha uma dívida de gratidão para com ele. Era um escritor sábio. Um tradutor atento, incansável e generoso. Traduziu , com Nina Guerra, largas dezenas de autores russos, muitos deles inéditos entre nós ou traduzidos pela primeira vez directamente da língua original. Os seus prefácios e apresentações, escritos num português límpido, sofisticado e imaginativo, são extraordinárias lições sobre a história e o ofício da literatura. Também fez traduções do francês, italiano e espanhol. Numa colecção que dirigi em tempos, editei uma antologia de contos de Alphonse Allais, que ele seleccionou, apresentou e traduziu. É dos livros de que mais me orgulho . Será lido para sempre e para sempre lembrado. [A qualidade da fotografia é péssima. Podia ter usado outra, mas esta é a minha preferida. O Filipe Guerra com o sempiterno cigarro entre os dedos. A fotografia está cortada. No original, à sua direita, e...

Deixa lá isso

A certa altura, a Branca de Neve exige ao Príncipe que pare com a sua empolada tagarelice e as suas intermináveis promessas de fidelidade: «Porque falas assim sem parar?» Se ele estivesse efectivamente rendido aos encantos da donzela, não precisava de taramelar «como uma cascata sobre o silêncio». Só a infidelidade, diz ela, «palra tão depressa». O Príncipe, lapidar, responde: «Deixa lá isso!» Na voz de um bom actor, é das frases mais desconcertantes e engraçadas do dramalhete de Robert Walser.

Uma vida boa

 De manhã, praia; à tarde, cinema. Tem sido assim, mas hoje vai ser praia todo o dia!

O que eu gosto de musicais

 

Playtime

Parece-me agora óbvio que Monsieur Hulot, de Playtime , é um descendente directo das personagens desarrumadas de Robert Walser. O mundo moderno, organizado como um frio relógio suíço, é para todas estas figuras um imenso parque de diversões. Motivo de prazer e angústia.

Morder o isco

Enquanto o ministério de Bonaparte tomava em parte a iniciativa de elaborar leis no espírito do Partido da Ordem, e por outro lado exagerava ainda a execução e aplicação dessas leis, ele próprio só procurava ganhar mais popularidade através de medidas néscias e pueris, evidenciar a sua oposição à Assembleia Nacional e chamar a atenção para uma secreta intenção, que só as circunstâncias do momento impediam, de proporcionar ao povo francês os seus tesouros escondidos. Por exemplo, a proposta de conceder um aumento diário de uns patacos (quatro sous ) aos oficiais subalternos. Ou a da criação de um banco de crédito (a conceder sob compromisso de honra) para os operários. Dinheiro oferecido e dinheiro emprestado, era esta a perspectiva com que esperava levar as massas a morder o isco. Oferecer e emprestar, a isso de limita a ciência financeira do lumpenproletariado, do mais distinto como do mais vulgar. Nisso assentavam as molas que Bonaparte era capaz de pôr a funcionar. Nunca um pretende...

Glarner Birnbrot

Nos seus diários, Max Frisch escreve que Lenine e Robert Walser conversaram apenas uma vez. Foi em 1917, na Spiegelgasse, em Zurique, em frente a uma pastelaria. Dias antes da Revolução e do regresso de Lenine à Rússia. Walser fez-lhe uma única pergunta: «Também gostas de Glarner Birnbrot ?» Frisch garante que a história é verdadeira.

Admiradores

Joyce e Musil moravam muito perto um do outro em Zurique durante a última guerra; no entanto, não fizeram nenhuma tentativa de se conhecerem, de se encontrarem. Os criadores não comunicam entre si. Precisam de admiradores, não de semelhantes . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Mexer na terra

Leio no jornal que em Santiago do Cacém há um empreendimento para «nómadas digitais» onde os clientes podem «ser tecnológicos, mexer na terra e viver em comunhão com a natureza». Haverá alegoria mais grotesca do que andamos a fazer à terra? Um produto para clientes «tecnológicos» mexerem, esburacarem, violentarem.

Vida luminosa

  –Tu, se fazes o favor, não vais na conversa destes dois ou ainda ficas como eles.

«Porque razão deverá uma pessoa trabalhar, podendo evitá-lo?»

A minha patroa tanto apregoou o uso da inteligência artificial generativa que acabei por aceitar: utilizei o chat gtp para negociar a extinção do meu posto de trabalho. Não foi em vão que li os livros do Cossery. O desemprego é o nosso futuro.

«As nossas mulheres»

Na apresentação da candidatura à Câmara do Porto, o concorrente da «direita democrática» disse: «Nesta terra não se ameaça, não se intimida impunemente as nossas mulheres, as nossas crianças, ou qualquer cidadão, seja nas ruas, nos jardins, ou nas estações de metro. Quem não sabe comportar-se dessa forma, não é bem-vindo!» Ia escrever que é uma declaração repugnante e irresponsável, mas desisti. Certas palavras já não significam nada.

Livros fortificantes

O que não devo aos livros destrutivos, do contra, «ácidos»? Sem eles, já não estaria vivo. É por reacção ao seu veneno, por resistência à sua força nociva, que me fortaleci e me apeguei ao ser. Livros fortificantes , pois despertaram em mim tudo o que os devia negar. Li quase tudo o que é preciso para soçobrar, mas foi precisamente por isso que consegui evitar o naufrágio. Quanto mais «tóxico» é um livro, mais age em mim como um tónico. Só me afirmo pelo que me exclui. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Dos jornais XXVII

Tudo impressiona nas notícias sobre o MAL, mas o que vai ficar na minha memória é a fotografia da faca pousada sobre um naperon bordado .

Novo mundo

Estão 33 ou 34 graus. Turistas japoneses passeiam pela Cordoaria de guarda-chuva aberto, tentando proteger-se do sol. Dezenas de guarda-chuvas, avançando em todas as direcções, como num dia de tempestade. Pousadas nos semáforos, as gaivotas observam este novo mundo, confusas.