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Le Diable Probablement

Só ontem é que descobri que o título do filme de Bresson vem (ou pode vir) do Libreto da Flauta Mágica . Papageno e Monostatos assustam-se um com o outro e exclamam: Hu! das ist der Teufel sicherlich . É apenas um devaneio, mas altera a (minha) forma de ver o filme. Já é outro Bresson.

Dos jornais XVII

Esta imagem de Zelensky na Sala Oval está tão saturada de significados que impressiona e prende a nossa atenção. Ali está o presidente ucraniano, um corpo em linhas rectas — tenso, isolado, de mãos atadas —, a olhar directamente para nós. Com o seu fato discreto de luta (ou luto?), parece um herói rohmeriano perdido num cenário de televisão demasiado dourado e demasiado iluminado (demasiado louco?), impedido de falar, impedido (ele e tanta gente) de levar a sua vida vulgar .

Selfie XXIII

Gostava de me mascarar de sombra: a minha ou, melhor ainda, a sombra-fuso da Ilda.

A coisa de que falais

Hamlet começa de noite. O fantasma do rei aparece, exigindo vingança. A aparição repete-se, uma e outra vez. «A coisa de que falais apareceu outra vez esta noite?» Sim, nas rádios, nos jornais, nas televisões, em toda a parte. Todas as noites, a toda a hora, onde quer que exista um ecrã, a «coisa» aparece, impelindo-nos à vingança e à guerra «pelo céu e pela terra» . A História é teimosa, não dá tréguas.

O sistema das canções

A música é um dos poderes máximos de Ford, talvez a chave fundamental. É possível que o seu desejo principal tenha sido converter o cinema em música, fazer filmes que se podem justificar pelo desenvolvimento musical, sem necessidade de mais nada. Creio que isto é verdade, pelo menos durante os prodigiosos anos da Argosy (incluindo Stagecoach ). Depois, talvez se tenha interessado ou viu-se obrigado a interessar-se por outras coisas.  Nesse sentido,  Fort Apache  é provavelmente a sua obra maior e bastaria este breve 1º acto para o demonstrar. Há ritmo até no bater de botas dos sargentos quando se põem em sentido perante O’Rourke na noite da festa. A música em Fort Apache também é o silêncio; o silêncio insólito e ominoso da carga, «formada a quatro», dos soldados do regimento quando o corneteiro é o primeiro a cair. Caso único entre as numerosas cargas de cavaleiros na obra de Ford, que são sempre acompanhadas pelo característico toque de clarim. No filme anterior, The F...

É só um intervalo entre guerras

«O resto é silêncio», diz Hamlet antes de morrer. São as suas últimas palavras. Mas o que resta não é silêncio, mas o barulho mudo da próxima guerra a aproximar-se. «Como muitas vezes antes da tempestade vemos/ Um silêncio nos céus, e a terra em baixo/ Tão muda como a morte./ Logo o trovão terrível rasga a região.»

Música das esferas

O género em John Ford é um conceito que se desdobra. Rio Grande começa como um western de guerras, reconciliações e muito pó, mas acaba por se revelar um magnífico musical. A música entra em cena como uma coisa material do dia-a-dia que afecta primeiro as personagens e depois o nosso corpo. Há uma palavra para isso.

A política do medo

À medida que o mundo se desconcerta e a extrema-direita se instala no poder ou se aproxima dele, o tempo parece empurrar-nos rapidamente para as grandes tragédias. Nos últimos dias, um pouco por toda a Baixa, dezenas de cartazes do Dia Internacional das Mulheres apareceram riscados e apagados com tinta preta. «Tem cuidado, Ofélia, tem cuidado/ E mantém-te na retaguarda do teu afecto,/ Abrigada dos projécteis e afrontas do desejo», diz Laertes à irmã. Ou melhor, Laertes ordena. Ele é um homem, viril e experimentado; Ofélia é apenas uma mulher, pura e inocente. E o macho conclui: «Toma por isso cuidado; a melhor política é o medo.» Os velhos textos não nos salvam, mas mostram o mundo sem paninhos quentes. Estamos avisados.

Dos jornais XVI

As políticas de responsabilidade social são o cúmulo da hipocrisia empresarial. Concebidas pelos gabinetes de marketing, o seu objectivo é transformar uma ideia vazia num grande feito. Hoje, no metro vi uns cartazes de recrutamento do Auchan. Criaram uma narrativa de sucesso plastificada (o actual CEO começou a sua carreira como estagiário) e chaparam-lhe a palavra respect em cima. Em vez de contar histórias indecentes, deviam era  tratar os trabalhadores com justiça .

A Ratoeira

Um balão vermelho com a forma de um coração, talvez oferecido no dia dos namorados, prendeu-se nos cabos de telefone, na Praça da República. Quando o vento sopra, parece um bicho desesperado a tentar escapar de uma armadilha. «Como se chama a peça?», pergunta o Rei. «A Ratoeira – que tropológico!», responde Hamlet .

Il est mort le soleil

Todos me dizem que No Quarto de Vanda é muito duro. Como se essa constatação fosse uma muralha. Percebo que as circunstâncias (a droga, a pobreza, a destruição do bairro) são extremas, mas o filme tem também uma doçura — ora triste, ora cómica — que se infiltra e altera o ritmo. Talvez não se dê por ela da primeira vez, talvez seja necessário dar tempo ao tempo. A minha relação com o filme, confesso, é um bocado esquisita, quer dizer, não o respeito como um objecto íntegro (o que vai muito contra as minhas regras). Às vezes vejo apenas uma cena, ouço uma conversa (os iogurtes de morango, o mês de maio com Bach em fundo,...) alguns sons (pássaros, a televisão ao longe, marteladas, tijolos e vidros a cair,...), como se fosse um filme de fragmentos arqueológicos. Mas o enquadramento constante , o que prevalece, é o apogeu e fim da adolescência, esses anos grandiosos em que temos um território que nos pertence por completo: o quarto é o nosso domínio, onde fazemos e dizemos o que que...

A sorte

«A sorte é tudo. Os acontecimentos tecem-se como as peças de teatro, e representam-se da mesma maneira. A única diferença é que não há ensaios; nem o autor nem os atores precisam deles. Levantado o pano, começa a representação, e todos sabem os papéis sem os terem lido. A sorte é o ponto.» Machado de Assis, 30 de Dezembro de 1894.

Sem pressa

Há um músico de rua que costuma estar, de manhã, no Miradouro da Vitória. Ouço-o da minha sala de trabalho. Não tem boa voz. Mas apurou uma técnica: alonga as canções até ao limite – versões de temas pop-rock famosos –, como se esticasse um elástico ao máximo e o conservasse assim, em absoluta contenção. Uma nota após outra, lentíssimo. Tão lento que, em vez de “cantar”, “diz” as letras. Diz, porém, como se as cantasse. A técnica musical do tipo exige uma atenção e um tempo que são o contrário do ritmo acelerado do turismo, dos vários turismos. «O tempo de sem pressa contarmos até cem.»

Consumições

No primeiro diálogo entre Adelino e Júlia — ela está a apanhar agulhas dos pinheiros com a filha mais velha junto à praia do Furadouro, mas parece que estão no Japão antigo a contas com as eternas agruras da vida —, as palavras saem como lava de um vulcão. A determinada altura, Júlia atira: não quero andar mais na boca do povo … bastam as consumições que já tenho . Consumições era uma palavra da minha avó e, talvez, dessa linhagem de mulheres pobres que se desunhavam para pôr alguma comida na mesa, vestir e criar os filhos, aturar os maridos, tratar da casa e dos velhos. Um trabalho colossal e invisível. Apesar das condições de vida terem melhorado um pouco depois do 25 de abril, a minha avó nunca deixou de se afligir com os desaires iminentes, com o medo das doenças ou de ficar numa situação  desprevenida , com qualquer coisa incerta. As consumições não a largavam — uma memória cravada de dor e tristeza, como se Júlia continuasse a acartar areia ou agulhas dentro de si.

Nós não sabemos, nós somos uns bichos.

Ontem, ao ouvir os diálogos de Mudar de Vida  com mais atenção (principalmente as conversas em surdina entre Adelino e Júlia/Albertina), consegui perceber o minucioso trabalho de António Reis na construção das frases . ( Nada em excesso, nada que falte .) As palavras do filme foram submetidas a um rigor extremo. No fim, cada uma conquistou o direito a ser dita e juntas transformaram-se numa força colectiva — como as flores silvestres que nascem pelo campo em abril. O mesmo milagre.