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Mensagens

Um Papa que perdia a fé e abandonava o Vaticano depois de uma declaração pública de ateísmo... Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Que se lixe o céu

Foi logo no início do filme. Enquanto Cary se veste para ir a uma festa, a filha anda pelo quarto a serigaitar e a dizer uns disparates freudianos aprendidos à pressa; às tantas pega num livro que está pousado na mesinha de cabeceira e pergunta-lhe: estás a ler isto? Nem espera pela resposta, ao ver a mãe, belíssima num vestido vermelho decotado, larga o livro e volta a palrar, agora sobre as mulheres egípcias enterradas vivas (depois havemos de saber que a miúda é tremendamente conservadora e as suas ideias — mais os óculos e o lencinho — não passam de teorias pré-casamento).  É um pormenor que passa despercebido, em princípio não é importante. Pois, mas esse livro cujo título fica fora de campo criou um sobressalto na minha cabeça — igualzinho à ervilha debaixo do colchão. No regresso a casa ainda vinha a pensar no mistério. Queria que o livro fosse para Cary o que Walden era para Ron. A cada hipótese que lançava, criava uma mulher diferente, menos medrosa, mais descarada, etc...

Livro e rua

Passo a tarde de sábado a ler no Célia. (A seguir, escrevi a frase «uma tarde tão doce e macia como um biscoito», mas entretanto risquei-a.) De vez em quando, levanto os olhos do livro e observo as pessoas a caminharem entre Miguel Bombarda e o Rosário. E tudo se mistura: as pessoas na rua e as personagens no livro; as personagens na rua e as pessoas no livro.

Lexicografia

cioranesca/o   (cio·ran·es·ca) adjectivo e nome feminino e masculino Diz-se da pessoa que cita Cioran em demasia.  Origem etimológica: cioran + esca . [A sonoridade romena dá e tira gravidade à classificação; pode ser elogio ou insulto. Na frase «ela não passa de uma cioranesca», porém, não há nenhuma ambiguidade.]

Fim do mundo

É a segunda vez em poucos anos que, diante de um putativo fim do mundo, o primeiro impulso de uma parte da população é açambarcar o papel higiénico dos supermercados. Ao que parece, é o único gesto trágico de que somos capazes. Quando se adivinha a catástrofe, fechamo-nos na casa de banho e limpamos desesperadamente o traseiro.

25

Comemorações do 25 de Abril, nos Aliados. Há sol, gente e cravos vermelhos. Um tipo no palco, animado pelo ambiente de festa, interrompe o discurso rotineiro e atira: «Se o Papa Francisco vivesse em Portugal em 1974 seria, com certeza, um capitão de Abril!”
Como todos os grandes acontecimentos cá em baixo, o «fim do mundo» chegará com um «primário», com um louco... medíocre. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

As pessoas honestas

Danton: Mas quem é que vai realizar essas belas coisas? Philippeau: Nós e as pessoas honestas. Danton: Esse “e” metido pelo meio é uma palavra muito larga, a distância que ela cria! O caminho é longo, fica a honestidade sem fôlego antes que as metades se encontrem. E ainda assim! Georg Büchner, A Morte de Danton . Tradução de Francisco Luís Parreira .

Chaga

O ódio é um sentimento muito bem distribuído. Ninguém é santo. Somos humanos porque também odiamos. Mas alimentar o ódio como forma de vida é já outra coisa. Usá-lo como arma política para alcançar o poder torna-nos grotescos. Lançá-lo contra seres humanos que, por mero azar, estão mais vulneráveis do que nós, transforma-nos em simples linchadores. A extrema-direita afasta-nos de qualquer noção mínima de dignidade. É uma chaga impossível de curar, mas que é preciso desinfectar todos os dias.

& outras manhas

Foi uma luta para me obrigar a traduzir decentemente este aforismo (V ariations Goldberg . / … Après ça, il faut tirer l’échelle). Na verdade, gosto mais da versão censurada ( Variações de Goldberg . / … Depois disto, deitar fora a escada). Tenho uma predilecção por escadas.

Selfie XXV

Distrai-me e saí na paragem errada, tive de voltar para trás, esqueci-me do saco com o almoço na carruagem. O que vale é que escrevi um belíssimo formulário de Perdidos & Achados . Senti-me a unha do dedo mindinho de Francis Ponge

Vendedor do mês

Na esquina de Antero de Quental com Damião de Góis, plantaram um outdoor de oito metros por três com a imagem sorridente do primeiro-ministro, acompanhada pela mensagem: «11 meses - regulamos a imigração.» Tudo neste cartaz me humilha e agonia: o tom triunfal e asséptico dos números, a fotografia do chefe político em pose de «vendedor do mês», o tamanho opressivo do cartaz.
Antes de imprimir uma cópia de trabalho, passo os olhos outra vez pela tradução dos  Cadernos . Substituo algumas palavras, corrijo advérbios, corto pronomes, inverto a ordem, verifico se as notas batem certo... Podia andar anos nisto. Um tabuleiro de Mahjong infinito. (Outro tipo de terapia.)

Campanha eleitoral

É incrível a que ponto o espírito é tão pouco capaz de prever, de admitir, de assimilar as catástrofes. À minha volta só vejo pessoas que não querem acreditar nas catástrofes. Isso vem de uma reacção de defesa completamente natural, mas também de uma falta de cultura histórica. Ora o que é a História senão a disciplina do pior? Quem a cultiva, habitua-se e até lhe ganha o gosto...  Eles não ousariam (foi o que os checos disseram a si mesmos recentemente... até que viram). Os romanos também não acreditavam que Alarico ousaria. Um homem político que rejeita a ideia de catástrofe é um ingénuo e prepara a ruína do seu país. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

"Só estou louco virado a norte-noroeste. Se o vento é de sul, sei muito bem distinguir uma águia de um serrote."