Foi logo no início do filme. Enquanto Cary se veste para ir a uma festa, a filha anda pelo quarto a serigaitar e a dizer uns disparates freudianos aprendidos à pressa; às tantas pega num livro que está pousado na mesinha de cabeceira e pergunta-lhe: estás a ler isto? Nem espera pela resposta, ao ver a mãe, belíssima num vestido vermelho decotado, larga o livro e volta a palrar, agora sobre as mulheres egípcias enterradas vivas (depois havemos de saber que a miúda é tremendamente conservadora e as suas ideias — mais os óculos e o lencinho — não passam de teorias pré-casamento).
É um pormenor que passa despercebido, em princípio não é importante. Pois, mas esse livro cujo título fica fora de campo criou um sobressalto na minha cabeça — igualzinho à ervilha debaixo do colchão. No regresso a casa ainda vinha a pensar no mistério. Queria que o livro fosse para Cary o que Walden era para Ron. A cada hipótese que lançava, criava uma mulher diferente, menos medrosa, mais descarada, etc. Qualquer uma delas teria destruído num ápice os constrangimentos do filme (que literalmente fecham Cary em enquadramentos dentro de enquadramentos e lhe cortam o movimento e a capacidade de pensar). Depois ocorreu-me que talvez esse livro seja uma dádiva celestial de Douglas Sirk: uma possibilidade em potência que escapa à miopia dos estúdios e da censura, uma linha de fuga para a personagem depois do filme, depois daquele plano falso com o bambi. — Vai Cary, vai!
Se calhar é esperar demasiado de um livro, mas não é para isso que eles servem? Não nos ensinam a afrontar o destino? O que é fechado? O céu?
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