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Mensagens

Fim do mundo

É a segunda vez em poucos anos que, diante de um putativo fim do mundo, o primeiro impulso de uma parte da população é açambarcar o papel higiénico dos supermercados. Ao que parece, é o único gesto trágico de que somos capazes. Quando se adivinha a catástrofe, fechamo-nos na casa de banho e limpamos desesperadamente o traseiro.

25

Comemorações do 25 de Abril, nos Aliados. Há sol, gente e cravos vermelhos. Um tipo no palco, animado pelo ambiente de festa, interrompe o discurso rotineiro e atira: «Se o Papa Francisco vivesse em Portugal em 1974 seria, com certeza, um capitão de Abril!”
Como todos os grandes acontecimentos cá em baixo, o «fim do mundo» chegará com um «primário», com um louco... medíocre. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

As pessoas honestas

Danton: Mas quem é que vai realizar essas belas coisas? Philippeau: Nós e as pessoas honestas. Danton: Esse “e” metido pelo meio é uma palavra muito larga, a distância que ela cria! O caminho é longo, fica a honestidade sem fôlego antes que as metades se encontrem. E ainda assim! Georg Büchner, A Morte de Danton . Tradução de Francisco Luís Parreira .

Chaga

O ódio é um sentimento muito bem distribuído. Ninguém é santo. Somos humanos porque também odiamos. Mas alimentar o ódio como forma de vida é já outra coisa. Usá-lo como arma política para alcançar o poder torna-nos grotescos. Lançá-lo contra seres humanos que, por mero azar, estão mais vulneráveis do que nós, transforma-nos em simples linchadores. A extrema-direita afasta-nos de qualquer noção mínima de dignidade. É uma chaga impossível de curar, mas que é preciso desinfectar todos os dias.

& outras manhas

Foi uma luta para me obrigar a traduzir decentemente este aforismo (V ariations Goldberg . / … Après ça, il faut tirer l’échelle). Na verdade, gosto mais da versão censurada ( Variações de Goldberg . / … Depois disto, deitar fora a escada). Tenho uma predilecção por escadas.

Selfie XXV

Distrai-me e saí na paragem errada, tive de voltar para trás, esqueci-me do saco com o almoço na carruagem. O que vale é que escrevi um belíssimo formulário de Perdidos & Achados . Senti-me a unha do dedo mindinho de Francis Ponge

Vendedor do mês

Na esquina de Antero de Quental com Damião de Góis, plantaram um outdoor de oito metros por três com a imagem sorridente do primeiro-ministro, acompanhada pela mensagem: «11 meses - regulamos a imigração.» Tudo neste cartaz me humilha e agonia: o tom triunfal e asséptico dos números, a fotografia do chefe político em pose de «vendedor do mês», o tamanho opressivo do cartaz.
Antes de imprimir uma cópia de trabalho, passo os olhos outra vez pela tradução dos  Cadernos . Substituo algumas palavras, corrijo advérbios, corto pronomes, inverto a ordem, verifico se as notas batem certo... Podia andar anos nisto. Um tabuleiro de Mahjong infinito. (Outro tipo de terapia.)

Campanha eleitoral

É incrível a que ponto o espírito é tão pouco capaz de prever, de admitir, de assimilar as catástrofes. À minha volta só vejo pessoas que não querem acreditar nas catástrofes. Isso vem de uma reacção de defesa completamente natural, mas também de uma falta de cultura histórica. Ora o que é a História senão a disciplina do pior? Quem a cultiva, habitua-se e até lhe ganha o gosto...  Eles não ousariam (foi o que os checos disseram a si mesmos recentemente... até que viram). Os romanos também não acreditavam que Alarico ousaria. Um homem político que rejeita a ideia de catástrofe é um ingénuo e prepara a ruína do seu país. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

"Só estou louco virado a norte-noroeste. Se o vento é de sul, sei muito bem distinguir uma águia de um serrote."

 

Notícias

Pergunto a um amigo se lhe escaparam, como a mim, as notícias sobre um jogo para maiores de 12 anos que «desafia os utilizadores a tornarem-se no pior pesadelo das mulheres», e que envolve incesto e violação. «Li notícias sobre o jogo, sim, mas na diagonal. Nesta fase, o médico aconselhou-me a ler a maioria das notícias na diagonal.»

Hašek, Meyrink

No livro que estou a ler, a certa altura, surgem, lado a lado, as fotos de Jaroslav Hašek e Gustav Meyrink, mal impressas e sem tratamento gráfico. Ao primeiro, estroina e bonacheirão, parece faltarem os olhos. No segundo, elegante e sibilino, os olhos são tudo. Como a diferença que vai entre o soldado Švejk e o Golem.

Dos jornais XXII

Como ele refere num dos capítulos decisivos do seu livro de crónicas, “controlar a opinião pública é um factor essencial ao exercício do poder em sociedades liberais”, só existindo liberalismo com a opinião pública controlada. “Parece um paradoxo, mas não é. O poder das sociedades liberais assenta no lucro e na sua acumulação. É mais rentável perder dinheiro numa cadeia de televisões e jornais do que pagar a um sistema repressivo com juízes, polícias e prisões. A ilusão da bondade de um Estado de Direito é o mais eficaz e agradável sistema de controlo da sociedade .” Carlos de Matos Gomes — O capitão de Abril que não desarmou, por Diogo Vaz Pinto. Sol.

Para quê ler um livro?

Creio que só se deveria mesmo ler livros que nos mordem e picam. Se o livro que lemos não nos acorda com uma punhada no crânio, para quê, então, lermos o livro? Para que nos faça felizes? Meu Deus, felizes também nós seríamos mesmo que não tivéssemos livros, e livros que nos façam felizes, em caso de necessidade, até nós próprios os poderíamos escrever. Precisamos, porém, dos livros que agem sobre nós como uma desgraça que nos magoa muito, tal como a morte de alguém que nos fosse mais querido do que nós próprios, tal como se fôssemos banidos para as florestas, longe de toda a gente, tal como um suicídio. Um livro tem de ser o machado para quebrar o mar gelado dentro de nós. Kafka numa carta a Oskar Pollak (1904). Tradução de Paulo Osório de Castro.

O que se vê e o que não se vê

Andámos nisto seis horas até que atingimos as ruínas de uma cidade abandonada e deserta. Lá, Zoto fez-nos desmontar e conduzindo-me a um poço, disse: - Senhor Alphonse, fazei-me a graça de olhar para dentro do poço e de dizer-me o que pensais dele. Respondi-lhe que via água e que pensava que era um poço. - Ah, sim? Pois estais enganado, porque é a entrada do meu palácio. Jan Potocky, Manuscrito de Saragoça . Tradução de Dórdio Guimarães.

Colpo di fulmine

A Nathalie Mansoux passou os primeiros minutos de Il Sogno Mio d’Amore  numa das aulas do curso do Batalha. Isso bastou para me desinquietar. Descobri nas imagens, no som, no fora de campo, nas paredes velhas do Conservatório, uma alegria rara. O rosto da jovem maestrina quando a música segue as suas mãos é qualquer coisa da ordem do mistério. 

Entrevista a Bohumil Hrabal

O que é que lhe dá mais trabalho quando escreve? A verdadeira maçada está na labuta com os textos quando tenho de os passar a limpo. Por isso, penso que o verdadeiro escritor só começa no copiar e no juntar ao texto os acrescentos. Para mim, é precisamente por isso que Tolstoi é um génio, que copiou Guerra e Paz ao todo sete vezes, de pé, e que, no entanto, de acordo com os seus diários, ainda conseguiu divertir-se com a sua condessa na carpete da salinha. Tiro o chapéu a Tolstoi, um verdadeiro escritor e ainda por cima a consciência não só de uma nação, mas do mundo inteiro! É isso que me custa mais e me dá mais trabalho quando escrevo; não pensar em Tolstoi, em Guerra e Paz , na carpete da salinha... Bohumil Hrabal, Todos os meus gatos . Tradução de Anna Almeida.

Best-seller

Graças ao Daniel e à Diana, o Caderno de Talamanca é o livro mais bonito de Cioran que já vi. Entretanto comecei a fazer pequenas emendas à tradução, o que sustenta o meu carácter duvidoso. Não há contradição entre os axiomas.

A palavra não é fiável

«Hamlet vive na teia da palavra. A sua indecisão, tantas vezes mal compreendida como uma fraqueza, é antes um sintoma da sua hiperconsciência da linguagem e do poder que ela tem de deformar a realidade. No universo da peça, a palavra não é fiável: esconde tanto quanto revela, desdobra-se em significados duplos, em equívocos, em escapatórias. O próprio Hamlet sabe que não pode confiar no discurso dos outros e, talvez por isso, fale tanto, como se a proliferação verbal fosse um modo de se armar contra a dissolução do sentido.» Ivone Mendes da Silva, Manual de Leitura: Hamlet .

Dos jornais XXI

Falhar pior

Todos os dias quando passo na estação Estádio do Mar vejo o cartaz: «Eles falham há 50 anos. Dêem-me uma oportunidade». E fico sempre admirada com a capacidade contorcionista da linguagem dizer a verdade.