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Mensagens

Variações sobre um título II

Título de um artigo no jornal Público de hoje : «Um racista e um desgosto de amor fizeram de Elgar Rosa um gestor de topo.» Variação 1: Um bigode polvilhado e uma carga de artilharia fizeram de Elgar Rosa um gestor de topo. Variação 2: Um pastorzinho e um mar encapelado fizeram de Elgar Rosa um gestor de topo. Variação 3: Um telescópio e um cortejo de sombras fizeram de Elgar Rosa um gestor de topo. Variação 4: Um jardineiro estrábico e um molho de chaves fizeram de Elgar Rosa um gestor de topo. Variação 5 Um cardeal e uma banda filarmónica fizeram de Elgar Rosa um gestor de topo.

Camilo Castelo Branco na California

Maria! Não me mates, que sou tua mãe, de Camillo Castello Branco (& etc, 1979). Stanford University Libraries, California.

Presto scherzando

Quando decidiu contar o que teria sido O Camião se tivesse sido filmado, Marguerite Duras foi furiosamante contra as convenções do cinema. Não só fez um filme suportado pelo texto como o construiu sobre um tempo verbal que é em simultâneo passado e futuro: o futuro hipotético das brincadeiras das crianças. Essa liberdade lúdica resgata o poder encantatório das histórias orais e apanha-nos em cheio. Na sala escura somos convocados a participar: vemos as imagens projectadas (Marguerite Duras e Gérard Depardieu sentados numa sala da casa de Neauphle-le-Château a ler o texto pela primeira vez com as folhas na mão, o camião a avançar pelas estradas, atravessando a paisagem e o inverno) e vemos outras imagens por trás dos nossos olhos — como se houvesse dois filmes a caminhar em paralelo para a perdição. Uma potência descomunal que trabalha misteriosamente dentro de nós. 

Por sua conta e risco

Miguel Ramalhete Gomes, no artigo  Censura e obsolescência : «A história da relação entre Heiner Müller e a censura na antiga República Democrática Alemã é complexa e não sem uma série de momentos inesperados. Curiosamente apenas poucas peças terão sido objeto de uma censura explícita que durou até à queda do Muro: mais notoriamente Mauser , mas também O Horácio , Cimento , Germânia Morte em Berlim , e A Máquina Hamlet . A partir de finais da década de 1960, repetia-se frequentemente o seguinte procedimento: um teatro propunha-se encenar uma peça nova de Müller, ou de outro dramaturgo, e, como era costume, enviava o texto para ser aprovado pelo Ministério da Cultura; o responsável, por vezes o próprio ministro da cultura, chamava então o diretor do teatro, comunicava-lhe as suas apreensões e dizia-lhe que poderia encenar a peça por sua conta e risco. Este encorajamento à autocensura tendia a resultar, exceto em casos excecionais. A partir da década de 1970, à medida que Müller come...

Os vencidos do século XXI

(...) Provavelmente, Youth é o filme mais ambicioso e mais importante da década, nos seus planos longos, quebrados e trementes, cheios de sombras e ciscos, e assombrados pela respiração de Wang Bing. Quando o século XXI começou – começou com No Quarto da Vanda , o filme de Pedro Costa – descobrimos que da miséria à dignidade vai um olhar de distância, e que os vencidos (os que escolheram mal, os que fizeram errado, os desafortunados, os mal-nascidos, aqueles a quem a vida não deu tréguas, convencendo-os de que o destino existe, e com ele os deuses raivosos e os santos milagreiros, que sempre os têm na mira) em nada se distinguem dos vencedores… partilhamos carne e condição. Agora que passaram 25 anos, Youth mostra-nos que dessa igualdade não nasce a fé nem a confiança, e que ela é um mero bálsamo fingindo engrandecer umas almas e encolher as outras, para simular justiça. (...) Wang Bing. O fim absoluto do mundo, Miguel Faria Ferreira.

Variações sobre um título

Título do jornal Público de hoje : «Dois sportinguistas, uma feminista e um criminalista disputam Ordem dos Advogados.» Variação 1: Dois mestres de dança, um advérbio de modo e um criminalista disputam Ordem dos Advogados. Variação 2: Dois chapéus-de-chuva, Dona Ubu e um criminalista disputam Ordem dos Advogados. Variação 3: Dois galos, uma armadura vazia e um criminalista disputam Ordem dos Advogados. Variação 4: Duas lápides, uma máscara de comédia e um criminalista disputam Ordem dos Advogados. Variação 5 Dois atiradores de facas, uma oração a Santa Rita de Cássia e um criminalista disputam Ordem dos Advogados.

Coisas espantosas

Grandes comemorações do bicentenário de Camilo Castelo Branco no telejornal da RTP 1 (das leituras à galinha mourisca). A seguir, em vez de  Amor de Perdição ou Francisca , de Manoel de Oliveira, resolvem passar Aldeia da Roupa Branca . Pobre Camilo. Pobres de nós. 

Uma casa em ruínas

Hamlet percorre a peça de Shakespeare como o visitante de uma grande casa em ruínas. Concentra-se, às vezes, num velho quadro. Outras, distrai-se com um pormenor, um livro empoeirado, uma faca. Perde-se entre corredores e quartos. Esquece irremediavelmente o caminho da saída .

Ler é um luxo

Sylvère Lotringer: Você também salta passagens quando lê os mitos ou as tragédias gregas?  Heiner Müller: Sim, mas li‑os quando era muito jovem. Hanns Eisler disse um dia que Brecht nunca lera O Capital , mas que era sempre capaz de encontrar a frase que lhe era útil. É uma questão de tempo – tempo para viver. Não me resta muito tempo para fazer as coisas que quero fazer. SL: Ler é um luxo. HM: Sim, um luxo enorme. Devorar os textos é mais rápido. Entrevista com Heiner Müller (1988). Disponível aqui.

Dos jornais XIX

Quando o primeiro-ministro Luís Montenegro diz que «não fez nem mais nem menos do que faz qualquer português» , está a colocar-se ao balcão do café central a piscar o olho à portugalidade . Por mais piruetas que as agências de comunicação façam, é esse rosto de chico-esperto que vai ser impresso nos cartazes.

Le Diable Probablement

Só ontem é que descobri que o título do filme de Bresson vem (ou pode vir) do Libreto da Flauta Mágica . Papageno e Monostatos assustam-se um com o outro e exclamam: Hu! das ist der Teufel sicherlich . É apenas um devaneio, mas altera a (minha) forma de ver o filme. Já é outro Bresson.

Dos jornais XVII

Esta imagem de Zelensky na Sala Oval está tão saturada de significados que impressiona e prende a nossa atenção. Ali está o presidente ucraniano, um corpo em linhas rectas — tenso, isolado, de mãos atadas —, a olhar directamente para nós. Com o seu fato discreto de luta (ou luto?), parece um herói rohmeriano perdido num cenário de televisão demasiado dourado e demasiado iluminado (demasiado louco?), impedido de falar, impedido (ele e tanta gente) de levar a sua vida vulgar .

Selfie XXIII

Gostava de me mascarar de sombra: a minha ou, melhor ainda, a sombra-fuso da Ilda.

A coisa de que falais

Hamlet começa de noite. O fantasma do rei aparece, exigindo vingança. A aparição repete-se, uma e outra vez. «A coisa de que falais apareceu outra vez esta noite?» Sim, nas rádios, nos jornais, nas televisões, em toda a parte. Todas as noites, a toda a hora, onde quer que exista um ecrã, a «coisa» aparece, impelindo-nos à vingança e à guerra «pelo céu e pela terra» . A História é teimosa, não dá tréguas.

O sistema das canções

A música é um dos poderes máximos de Ford, talvez a chave fundamental. É possível que o seu desejo principal tenha sido converter o cinema em música, fazer filmes que se podem justificar pelo desenvolvimento musical, sem necessidade de mais nada. Creio que isto é verdade, pelo menos durante os prodigiosos anos da Argosy (incluindo Stagecoach ). Depois, talvez se tenha interessado ou viu-se obrigado a interessar-se por outras coisas.  Nesse sentido,  Fort Apache  é provavelmente a sua obra maior e bastaria este breve 1º acto para o demonstrar. Há ritmo até no bater de botas dos sargentos quando se põem em sentido perante O’Rourke na noite da festa. A música em Fort Apache também é o silêncio; o silêncio insólito e ominoso da carga, «formada a quatro», dos soldados do regimento quando o corneteiro é o primeiro a cair. Caso único entre as numerosas cargas de cavaleiros na obra de Ford, que são sempre acompanhadas pelo característico toque de clarim. No filme anterior, The F...

É só um intervalo entre guerras

«O resto é silêncio», diz Hamlet antes de morrer. São as suas últimas palavras. Mas o que resta não é silêncio, mas o barulho mudo da próxima guerra a aproximar-se. «Como muitas vezes antes da tempestade vemos/ Um silêncio nos céus, e a terra em baixo/ Tão muda como a morte./ Logo o trovão terrível rasga a região.»

Música das esferas

O género em John Ford é um conceito que se desdobra. Rio Grande começa como um western de guerras, reconciliações e muito pó, mas acaba por se revelar um magnífico musical. A música entra em cena como uma coisa material do dia-a-dia que afecta primeiro as personagens e depois o nosso corpo. Há uma palavra para isso.