Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

1.º Maio

Se as denominações não estiverem correctas, se não corresponderem à realidade, a linguagem não tem objecto. Quando a linguagem não tem objecto, a acção torna-se impossível, e, por conseguinte, as empresas humanas desintegram-se: é impossível e vão geri-las. É por isso que a primeira de todas as tarefas de um verdadeiro homem de Estado consiste em rectificar as denominações. Quando Confúcio propõe rectificar as denominações como primeira tarefa para governar, está certo e fora do seu tempo — na eternidade, dir-se-ia  ( la mer allée avec le soleil ). Nós continuamos à espera que as rectificações sejam feitas. É preciso lutar por uma revolução na linguagem que não venha do mundo sinuoso e fraudulento das finanças nem de ideias políticas mesquinhas. ( Il est démontrable que chaque mouvement imprimé à l'air doit à la fin agir sur chaque être individuel. ) Ainda não experimentamos a fundo o poder da linguagem.  

Que não se muda já como soía

Depois de Serralves e da Casa da Música: Trabalhadores da empresa municipal Ágora - Cultura e Desporto do Porto (Batalha, Rivoli, Galeria Municipal, Campo Alegre, etc.) denunciaram "contratos precários" em equipamentos do município e reivindicaram melhores condições de trabalho. Em março,  o tipo que ganha 288 vezes mais  do que os trabalhadores do Pingo Doce dizia que a fraca qualidade dos nossos políticos obriga-nos a pensar se não devemos mudar enquanto sociedade .  Sim, é urgente mudar, mas contra as práticas das empresas-sugadoras. Lutar por uma vida boa para todos.

Como se ele fosse real

Numa das salas do Museu Machado de Castro, em Coimbra, dedicada à escultura do período barroco, há uma sequência de três expositores com três meninos Jesus nus. No texto que acompanha a exposição, lê-se: «Nos conventos femininos costurava-se para o Menino como se ele fosse real, estivesse ao colo da Mãe ou de uma santa, ou figurado como Salvador do Mundo.»

Um plano de Dina e Django

Os amantes abrem os pulsos com a ponta de um punhal e misturam o seu sangue. Em fundo, ouve-se a multidão: «O povo unido jamais será vencido.»

E de nós, o que faremos?

É nos transportes públicos que se vê melhor o quanto as mulheres portuguesas mudaram desde o 25 de abril. Vê-se na forma arejada como se vestem e falam umas com as outras ou com os homens; como andam de cabeça erguida; como sabem que ainda estão no princípio.  As mulheres das classes mais ricas ficam de fora do retrato porque não andam em transportes públicos. Como são conservadoras, suspeito que não mudaram assim tanto.

Observações avulsas sobre matosinhos sul #65

Não tenho medo da minha sombra, é até uma das partes do meu corpo (?) que prefiro. Mas há bocado, vinha a caminhar junto à Casa de Arquitectura, de sul para norte, apercebi-me de duas sombras gémeas na parede à minha direita, uma no encalço da outra e estremeci — como quando lia as histórias assustadoras de Allan Poe.

Observações avulsas sobre o bonfim #64

Mais, le lendemain matin.

Refletir (um postal para a Alexandra)

Conheci escritores obtusos e até mesmo estúpidos; todos os tradutores que conheci eram, sem excepção, inteligentes e muitas vezes mais interessantes do que os autores que traduziam. (Há mais reflexão na tradução do que na «criação».) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (outubro de 1971).

Observações avulsas sobre o bonfim #63

 

You hit me with a flower

Assim como os viciados em jogo podem solicitar ao Serviço de Regulação e Inspecção de Jogos a proibição de aceso às salas de jogos dos casinos, eu devia pedir — não sei a que serviço estatal —  a interdição às bibliotecas. No sábado fui devolver cinco livros para poder, enfim, ler os meus livros amontoados por todas as divisões da casa, mas não resisti a este e àquele e acabei por trazer mais livros e, sinceramente, já não sei o que fazer à minha vida.

O tédio

O que mais impressiona nestes novos e velhos defensores dos chamados «valores da Identidade e da Família» é a sua entrega passiva ao tédio. Ao tédio mais absoluto. Uma entrega sem luta, sem revolta, voluntária, apática. Na verdade, têm horror à vida.

LP

As 450 páginas de Democracia , de Alexandre Andrade; as 4h12m d' O Amor Louco , de Jacques Rivette — para mim, são a mesma coisa. Parto para os dois com o mesmo entusiasmo pela longa duração.

Uma madeixa cor-de-rosa

Vinha da biblioteca, no 305, a ler a introdução de Catherine Grant ao livro Porque não houve grandes mulheres artistas? , de Linda Nochlin , quando reparei na mulher que se sentou no lugar lateral mesmo à minha frente. Era bonita, devia ter setenta e tal anos, estava de roupa ligeira, sapatilhas e tinha uma madeixa pintada de cor-de-rosa. Entre o livro e ela havia uma ligação, não de causa e efeito como determina a nossa pequena lógica, mas de possibilidade e libertação. É por causa deste livro e de outros semelhantes que esta mulher pode pintar uma madeixa cor-de-rosa. 

O sopro revolucionário

Marguerite Duras: (...) Acredito na utopia política, quer dizer, acredito profundamente no movimento de Allende que é talvez a coisa mais importante que aconteceu desde 17, juntamente com os primeiros momentos, os primeiros anos de Cuba. É a utopia que faz avançar as ideias de esquerda, mesmo que falhe. 68 falhou, e isso foi um avanço fantástico para a ideia de esquerda, aquilo a que durante muito tempo se chamou exigência comunista, mas que na conjuntura actual já não significa rigorosamente nada. Só se pode fazer isso.... Tentar umas coisas, mesmo se são feitas para falhar. Mesmo falhadas, são as únicas que fazem avançar o espírito revolucionário. Como a poesia faz avançar o amor. Está tudo ligado. Não há poesia — verdadeira — que não seja revolucionária. Quando Baudelaire fala dos amantes, do desejo, está no auge do sopro revolucionário. Quando os membros do Comité Central falam da revolução, é pornografia. O Camião ( entrevista com Michelle Porte) , de  Marguerite Duras.

Larvar, dissolvente

É uma partida do inconsciente, muitas vezes quando parece que estamos a falar dos outros, é precisamente de nós mesmos que falamos. No texto de introdução do livro Identidade e Família , basta substituir uma palavra para este parágrafo se tornar um espelho elucidativo dos seus autores: «Não podemos desvalorizar os adversários da família democracia, umas vezes mais à luz do dia, outras vezes de um modo mais subtil e larvar, mas nem por isso menos dissolvente.»

Apenas um pássaro

Uma rola fez o ninho numa árvore enfezada que cresce junto ao edifício de escritórios onde trabalho. Se abrisse a janela e esticasse o braço, conseguia tocar-lhe. Isto comove-me mais do que sou capaz de dizer. Não me interpretem mal: não há aqui nada de especialmente  poético . É apenas um pássaro a tentar manter-se vivo. Tão empenhado como eu em escapar às mil quedas de cada dia.
Fragmentos de Um Filme Esmola, A Sagrada Família:

Vicente de Deus

Dizia que dava “poderes” ou “milagres”. Na prática, imaginava algo bom para alguém. O rádio entrava nesse jogo. “Interessa-me ouvir as notícias para ajudar.” Um exemplo? “Penso numa mala cheia de dinheiro e ponho essa mala cheia de dinheiro nas tropas. E acaba a guerra.”

Mutualismo

Roman, o meu vizinho russo que fugiu da guerra e vive no 4° andar, ofereceu-nos chocolates na Páscoa. Em troca, ofereci-lhe as Memórias Póstumas de Brás Cubas — para ele treinar o português. 

Juste une image

A meio da tarde, o noticiário da CMTV exibia de um lado o desfile da claque do Benfica e do outro a manifestação da extrema-direita no Porto — ambas acompanhadas por polícias fortemente armados. O ecrã estava dividido em dois, mas não eram duas imagens. No rodapé lia-se: «Perigo total: fruta atirada à PSP». (...) quando criamos a tragédia no fundo acaba por ser só uma comédia e vice-versa.