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Mensagens

Swell

Vi They Were Expendable pela primeira vez e sem legendas, por isso estive mais atenta ao que as personagens dizem e fiquei admirada porque a palavra mais repetida neste filme amargo, onde morrem tantos homens e tantos ficam para trás, é swell . Só me faltava esta, encostar John Ford aos «linguístas licenciosos».

Visões

Há um triângulo equilátero (ou uma pirâmide?) em História(s) do Cinema: o vértice A é o «(s)»; os segmentos A-B e A-C são «História»; e o segmento B-C é «Cinema».

A foca

Françoise Frontisi-Ducroux explica como a foca representa, nos antigos mitos gregos, a ideia de anfíbio: «Criatura mista, com características de peixe e de mamífero, que gosta de se estender na areia húmida no seu vaivém entre o mar e a terra, a foca é uma figura ideal de intermediário, apta a encarnar fronteiras e passagens entre categorias habitualmente distintas, ou mesmo opostas. É precisamente isto que as histórias de metamorfoses põem em cena.» O general Della Rovere é a foca no filme espantoso de Rossellini , que passou no Batalha, e que ainda não tínhamos visto. De trapaceiro a benfeitor e vice-versa; de colaboracionista a resistente e vice-versa; de Rossellini a De Sica e vice-versa.
Tirando os problemas técnicos (Serralves não tem capacidade de rede para projectar ficheiros sem saltos no som?) e o final abrupto sem qualquer tipo de diálogo, a conferência de Nicole Brenez sobre as conferências de Godard no Conservatório de Arte Cinematográfica em Montreal e o subsequente livro Introdução a uma Verdadeira História do Cinema foi muito interessante. Nicole ofereceu-nos o resultados das suas minuciosas pesquisas sem qualquer tipo de afectação — parecia uma jovem detective excitada com as suas descobertas dotada de um discurso amoroso e inteligente que agarra logo. Em relação à edição do livro (e sabemos como os livros são cruciais na vida do cineasta-historiador), Nicole contou dois factos importantes. Godard escolheu uma pequena editora (éditions Albatros, fundada em 1970 sobre a égide da palavra «liberdade») e não, por exemplo os Cahiers du Cinéma apesar de na altura até estar de boas relações com a sua equipa editorial. Houve uma primeira tiragem (2000 exem...

Dois filmes realistas

Logo à noite, vou substituir a cinemateca portuguesa pela francesa  (mais à mão). Femmes Femmes (1974, Paul Vecchiali) fica para o fim da semana .

O que era?

O truque é óbvio. Já foi usado mil vezes por mil autores diferentes. Mas é sempre espantoso: «É com grande relutância - confesso - que me disponho a contar o que se segue. Os acontecimentos que pretendo relatar desenvolvidamente são tão extraordinários que não deixo de esperar a mais completa incredulidade e o desdém geral. Aceito desde já ambas as coisas. Creio ter a coragem literária suficiente para aceitar o cepticismo. Após madura reflexão, decidi narrar, com toda a simplicidade e com toda a honestidade de que sou capaz, certos factos que me foi dado observar no passado mês de Julho e que não têm equivalente nas crónicas dos mistérios das ciências físicas.» Fitz James O’Brien, O que era? Tradução de Manuel João Gomes.

«A família do cinema»

Quando se fala da família de actores de Ford, não é bem no sentido literal, de sangue; trata-se um conjunto de actores queridos ao cineasta que passam de filme para filme e transportam um fascínio que se poderia classificar de metacinematográfico. Como John Ford é avesso a esses conceitos académicos, talvez seja mais justo dizer que é uma comunidade (com tantos irlandeses à mistura!) que, após uma breve cisma e alguma insistência, nos abre a porta, aperta-nos a mão e oferece-nos um copo. Por um momento (graça das graças), o espaço entre dentro e fora do filme anula-se, estamos todos no mesmo plano, somos todos espíritos de carne e osso. Mas na sequência no bar d' O Homem Tranquilo em que Sean ganha a confiança da gente de Innisfree quando esclarece quem é, quem foi o seu pai e, acima de tudo, quem foi o seu avô ( his grandfather over grand man he was, was hung in Australia ) — a família é mesmo família. O velho que o ouve é Francis Ford, o irmão mais velho que o levou para o ci...

Um gesto de amor

A forma de encarar o contraponto, proposta por Schönberg, não como uma técnica musical que desenvolve, mas movimento que desemaranha, pode ser um bom ponto de partida para analisar as História(s) do Cinema . A matéria do projecto de Godard é tão desmesurada que podemos passar a vida a pesar, medir, confrontar o que vemos, ouvimos, fica na sombra. Escrever páginas e páginas de relatórios. Dar em loucos.  

Observações avulsas sobre o bonfim #70 (fado da frutaria)

A maior parte das frutarias populares do Porto é território agreste. A fruta é barata, por isso os clientes (gente com pouco dinheiro, muitos imigrantes) aguentam as repreensões constantes e não se melindram com os avisos colados nas paredes. Apanho quase sempre a Sofia irritada e aos berros na caixa. Hoje de manhã, depois das brejeirices habituais, gritou a um cliente: não arranque as folhas do coração, eu não vejo, mas ouço .

A nossa vida

Stagecoach (à esquerda), Bear and Rabbit, Castle Rock. Stagecoach é um western antológico por várias razões: foi um dos primeiros filmes a ser rodado em Monument Valley; lançou John Wayne como estrela (aquele plano para a frente e com desfoque é uma espécie de foguete?); e muitos dos seus planos serão repetidos ao longo da história do cinema porque são cinematograficamente poderosos e, acima de tudo, alimentam os mitos fundadores dos Estados Unidos. Porém, o que mais me agrada no filme são duas coisas um pouco afastadas dos topos, mas mais importantes e regulares na obra conjunta de Ford. 1. A forma como as personagens secundárias (?) brilham, tornando-se inesquecíveis. Em cada plano que aparecem — Peabody, o bêbado e certeiro Doc Boone, o banqueiro golpista ou as velhas harpias que ficaram em Tonto, por exemplo — ganham uma materialidade espontânea que é como o vento nas árvores e nos incita também ao movimento*. 2. E ainda o modo como John Ford trabalha a oposição entre esp...

Enquanto dormia no meu canto

Início do Capítulo IV, de A Estalagem do Dragão Voador , de George Sheridan Le Fanu: «Quando um homem viajou na posta o dia inteiro, mudando de clima de meia em meia hora, quando um homem está satisfeito consigo mesmo, não tem quaisquer aborrecimentos e está sentado à lareira, num cadeirão confortável, depois de uma refeição copiosa, esse homem tem desculpa de se deixar adormecer. Tinha já enchido o meu quarto copo quando adormeci. Devo dizer que o espaldar a que encostava a cabeça não era muito confortável; de mais a mais, quem deseja ter sonhos agradáveis não come toda uma série de petiscos franceses. Ora, enquanto dormia no meu canto, tive um sonho.» Tradução de Manuel João Gomes.

Reflexos condicionados

Acabar 2024 com um plano de Rio Grande . Começar 2025 com um plano d’ O Homem Tranquilo . — What do you think of cinema today? John Ford: I don't go anymore. I don't see why humanity likes that which stresses stupidity and lowliness. Sex, obscenity, violence, ugliness, decadence and degeneration don't interest me. Excesses disgust me. What I like is effort, the will to go beyond oneself. For me, life is to be oneself in the face of friends who you punch in the nose, and then you drink and sing together. It is the attraction to real women, and not the Miss Bovarys. It's the fresh air, the great outdoors, the great hopes.  

Ver um filme

Straub’s sentence: “It’s taken me twenty years to learn how to watch a film.” He said it with the irritation of a worker proud of this difficult knowledge. But what does it mean? To see and to listen to what is there (visible and audible). To see for example – in the same glance – John Ford’s shot, the shooting of the shot, the horse, the actor separately from his role, the character separately from the body, the human being separately from his social function. To listen to the music knowing that a Central European Jew fleeing Nazism composed some sub-Schoenberg to earn his living, to listen to the direct sound, etc. It’s an aim of course, but it is the only possible materialist approach.   Serge Daney, 25 de março de 1988. Tradução de Andy Rector e Laurent Kretzschmar .

Uma coisa viva

(...) À Sophia apaixonava-a um trabalho rigoroso das palavras mas sabia como ninguém que a língua é uma coisa viva, parte fundamental do pensamento, e gostava que o trabalho de fazer os acertos na tradução permitissem conversas que as próprias palavras suscitavam. Para se perceber as suas escolhas de tradutora tem de se entender a sua ideia de tradução: uma verdadeira interiorização, até musical, do texto inglês e a resposta — como se fosse um eco que falasse português e que tantas vezes parecia tradução literal, sendo no entanto o resultado de uma escolha não a favor da fidelidade literal mas sim de outra fidelidade mais inteligentemente entendida, a fidelidade de encontrar em português uma linguagem teatral para um texto destinado a ser representado e a uma poética sua, fiel à de Shakespeare. (...) Luís Miguel Cintra, prefácio a «Muito barulho por nada»
A última frase da nota que antecede Os homens e os outros , de Elio Vittorini: «Os tradutores [Elena Ricci Pinto e J. Wilson Pinto] apagaram-se intencionalmente».

Vantagens do turismo

Nove da manhã, seis graus centígrados. A cidade ainda está meio estremunhada. As colunas de som da esplanada do antigo café Luso (transformado, entretanto, numa coisa de cujo nome não me lembro nem quero lembrar) espalham pela Praça de Carlos Alberto, como brasas, as notas de Stayin' Alive , dos Bee Gees.

Nicho

«Trata-se de explorar um nicho de mercado», dizia a notícia, a propósito de um qualquer novo negócio. O meu amigo comentou: «O longo braço do mercado chega a todo o lado. Um dia destes um tipo precisa de um nicho para meter um santinho e encontra tudo ocupado.»

Em Marcha

Se publicar isto, confiscamos o livro

Juan Filloy, em 1987. Nunca se interessou pelo sucesso, nunca se preocupou com isso? Absolutamente. E talvez por isso ele nunca tenha chegado. Ao longo da vida, não mexi um dedo, não bati à porta de uma editora. Pagava as minhas próprias edições: 300, 400 exemplares, impressos em gráficas de Rio Cuarto, e algumas de Buenos Aires, que depois distribuía pelos amigos. Fazia edições que designava por «edita mi corum». Nunca vendi um livro. Foi um worst-seller . Sim. E quando me envolvi com uma editora de Buenos Aires, assinei três contratos para a edição de 6000 exemplares. Editaram três romances ( Op Oloop , ¡Estafen! e La Potra ), mas não o que tenho em maior estima, Caterva . É um romance estuário: tem 560 páginas. É um bom romance, para muitos leitores o melhor que já escrevi. Sempre pensei que considerava La Potra como o seu melhor livro. Ah, sim, o que digo é que muitos amigos gostam mais de Caterva . Eu, claro, gosto de La Potra , e também de Op Oloop . Por outro lado, ¡Estafen! ...

Recomeçar tudo

22 de Abril de 1936 A verdade é que nada deste mundo me atravessou ainda o espírito, projectando-se em radiografia na sua estrutura de realidade constitutiva e metacorpórea. Não atingi ainda o esqueleto cinzento e eterno que está por baixo. Vi cores, respirei odores e sacrifiquei gestos, contentando-me com uma alegria electiva e reordenadora. Fiz espírito como quando se está com amigos, e gozei sozinho. Ignorei a palavra pensada. As minhas palavras foram apenas sensações. Os meus retratos foram quadros, não dramas. Fixei-me sobre determinadas figuras e ruminei-as e contemplei-as tanto que cheguei a reproduzi-las numa transfiguração satisfatória. Simplifiquei o mundo, reduzindo-o a uma banal galeria de gestos de força ou de prazer. Naquelas páginas encontra-se o espectáculo da vida, não a vida. Tenho de recomeçar tudo. Cesare Pavese, O Ofício de Viver . Tradução de Alfredo Amorim.