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Mensagens

Acertar contas

Então, lembrei-me do Rimbaud e das contas que tinha a acertar com ele e comigo. Parti para a tradução como o pugilista destreinado para o saco de boxe: quis treinar a musculatura. E, com isso, tentar uma nova redenção.   «Se algo há que não me enjoa / São as pedras e os torrões. […] // Fomes são pontas de ar negro; […] / — É o bucho que lateja. / É a desdita.» (’Festas da Fome’, p. 333)

Podem acordar esse senhor?

Ontem à noite, a meio do filme, alguém no público ressonava com um ronco bestial. Devia ser um sonho feliz, aquele que o homem estava a ver com os olhos da alma . Numa sequência longa sem som (um plano dos Lumière de 50 segundos) , o ronco transformou-se na banda sonora. Do outro lado da sala, outro espectador atirou: «Podem, por favor, acordar esse senhor?» Não está certo interromper o sonho de um homem.

Frases finais de alguns contos de Walser

«Com uma risada, bebi a minha cerveja e parti.» «Quem tem vontade de amar levanta-se dos mortos, e só quem ama está vivo.» «Sebastian, por sua vez, fez-se ao mundo e com o tempo tornou-se célebre.» «E assim a nossa história chegava a um fim feliz: e é isso o mais importante, quer dizer que amanhã o tempo vai estar bonito.» «E com isto tomo a liberdade de declarar que esta história chegou ao fim.» «Foi com o coração pesado que me decidi a contar esta história.» «Este burlesco texto em prosa deixou-me sério.»

ZOV #1

Desde que li ZOV , não paro de encontrar personagens do livro por aí à solta. Hoje de manhã, um homem desatou a dar socos no ar na praia de Leça. E eu pensei com os meus botões [ botões na praia não, pensa com outra coisa ]: olha, mais um tipo inventado pelo Rui.

Dos jornais XXXVIII

As senhoras da limpeza têm um verdadeiro sentido escatológico da vida das famílias ou empresas para quem trabalham. Aprendi isso nas viagens de autocarro e em muitas conversas pedagógicas. Agora também posso juntar os partidos:  A senhora que limpava a sede do partido revela que «por vezes a sede parecia uma taberna! Rasca! Enfrascavam-se de uma maneira… Se esta gente governasse o país, eu emigrava…»  Creio que temos aqui uma definição lapidar de choldra.

Não é de agora

Inteligência Artificial. Na apresentação do livro de André Príncipe, o autor fez uma blague formidável sobre o assunto. Eu anotei: «A inteligência artificial não é de agora. Houve e haverá sempre pessoas cuja inteligência é artificial. Para elas, isso não é um problema.»
Seguro na palma da mão um tigre branco, perfeito.

Talvez sim, talvez não

«E assim teríamos um final/ agradável com um casório/ feliz», dizem todas as personagens a uma só voz, na última cena da Bela Adormecida . Parece o final feliz de um conto de fadas, mas não. O verbo no condicional – «teríamos» – abre uma ferida na história. Walser escreve a última frase com uma navalhinha.

Como pode ser verdade se tu dizes que é mentira?

O que é «verdade» e o que é «mentira» nos dramalhetes de Walser? Quando é que as personagens estão a ser «verdadeiras» e quando estão a «mentir»? Alguém na mesa diz: talvez a verdade esteja na mentira. Quer dizer, quando estão ostensivamente a «mentir» é quando as personagens são mais «verdadeiras».

Experiência

No monólogo do Príncipe da Gata Borralheira , de Walser, substituir o sapato de prata, que parece «ter boca e o dom da fala», pela caveira de Yorick. E na cena do cemitério, em  Hamlet , substituir a caveira do bobo do Rei pelo sapato da Gata Borralheira .

Imobilidade em movimento

O sentimento de que corre tudo mal existiu em todas as épocas, e com razão, já que o maior prazer dos homens é inventar maneiras de tornar a vida uns dos outros miserável. A afirmação dos conservadores de que a sociedade actual é má, mas a seguinte será ainda pior, é irritante e até mesmo insuportável. E, no entanto, a história confirma este diagnóstico à risca. Que fazer? Tornar-se budista ou aceitar o Progresso de olhos fechados? Esta superstição vem do tempo do Marquês de Condorcet, e a sua influência tem sido enorme. A ideia de Progresso é uma forma atenuada de utopismo, um delírio aparentemente razoável sem o qual as ideologias do século passado, assim como as do nosso, teriam sido impossíveis. A originalidade do ponto de viragem histórico que estamos a testemunhar reside no facto de este delírio estar a ser contestado, submetido a uma lucidez fatal — um despertar ao mesmo tempo libertador e terrível. As velhas categorias de «direita» e de «esquerda» parecem ultrapassadas. Eviden...

Morte programada

O capítulo 33 de Desejar Desobedecer , de Didi-Huberman, é dedicado ao Gueto de Varsóvia: “No interior desses muros, a população judaica foi deliberadamente submetida pelos nazis à fome. Começou, nessa altura, a morte programada de todo um povo.” É difícil não pensar em Gaza. Adenda:  Nem de propósito, a edição de hoje do Público  (21 de Setembro) traz uma longa entrevista com Didi-Huberman. O pretexto é justamente o livro Desejar Desobedecer . Uma passagem: “a actualidade é a continuação da História por outros meios. É fundamental trabalhar sobre a questão da História e de uma forma permanente. O horror de Gaza não nos deve [levar a] considerar o horror da Shoah como coisa do passado. Não concordo nada com essa ideia. É a mesma história, é a mesma história. O passado nunca passa.”

Eu e o Príncipe ficamos a assistir

A certa altura, a Rainha chama o caçador e manda-lhe que represente a cena do assassínio fingido de Branca de Neve: Como se fosse verdade, representa-nos aqui a cena da Branca de Neve em perigo na floresta. Faz como se a quisesses matar. E tu, menina, foge como se fosse a sério. Eu e o Príncipe ficamos a assistir, censurando-vos se fordes demasiado mansos no desempenho dos papéis. Ora bem, começai. De repente, Hamlet irrompe no conto de Walser . A peça dentro da peça, outra vez. Fantasmas por todo o lado.

Selfie XXVIII

Atravesso a avenida para entregar um cheque do Lidl ao tipo que arruma carros nas Finanças. Ele agradece, depois olha-me de cima a baixo e pergunta que número calço – quer oferecer-me umas botas que encontrou de manhã, ainda em bom estado.

Trabalho de mesa

A actriz lê uma fala da Gata Borralheira para a Primeira Irmã: Estou aqui sempre a teus pés. Deixa que beije a tua mão, doce mão que nunca me bate salvo por justo castigo. Teus olhos miram-me como um sol. Sou a terra que vive do bondoso beijo e que outra coisa nunca poderá fazer senão, deleitada, florescer ao teu encontro. A actriz interrompe, de súbito, a leitura e comenta: «Isto é tão perverso!»

Lavar e estender a roupa

Ontem, esteve um dia bonito: aproveitei para lavar roupa e pô-la a secar. À noite, havia ainda algumas peças ligeiramente húmidas. Ficou tudo no estendal. Hoje, e contrariando a previsão meteorológica, o dia nasceu cinzento e debaixo de uma chuva miudinha. A roupa está encharcada. Nisto, como em quase tudo, não adianta ser optimista ou pessimista. O mais “sensato” é ser beckettiano.

On ne peut pas éviter de l’écouter

Acho o filme ao mesmo tempo belo e fútil. Creio que as pessoas que não gostam do filme são virgens do próprio desejo e exercem a sua miséria como forma de condenar aqueles que estão sempre prontos a afundar-se nesse estado primordial que partilham com as feras, os loucos, a maioria — a tentação do amor. M.D. Le Navire Night , de Marguerite Duras. Projecção no Cinema Batalha, às 17H15 na sala2.

Hoje não aconteceu nada

Sexta-feira, 29 de Janeiro de 1915 Deverei dizer “hoje não aconteceu nada”, como costumávamos fazer quando os nossos diários começavam a morrer? Não seria verdade. O dia de hoje é muito parecido com uma árvore nua: tem toda a espécie de cores, se se olhar com atenção. Virginia Woolf, Diário - 1915-1926 . Tradução Maria José Jorge.

e ainda hoje vou

«Ao sair, depus na mão do criado uma nota de cem. Ele devolveu-ma dizendo que estava habituado a valores mais elevados. Pedi-lhe que se contentasse com menos, só desta vez. Lá fora, esperava-me um carro que me levou dali, e assim fui e ainda hoje vou.»  O jantar de Robert Walser. Trad. de José Maria Vieira Mendes. Revista Ficções, Tinta Permanente, 2002.

Dramoletes

A palavra dramoletes, inventada por Bernhard, caracteriza uma forma, forma breve, peça curta. E transporta também um traço de humor, ligando forma dramática a omeleta, comida rápida – Bernhard na última longa entrevista, concedida a Kurt Hofmann ( Em conversa com Thomas Bernhard , Assírio e Alvim, trad. de José A. Palma Caetano) fala com frequência de fazer omeletas. Estes dramoletes são um conjunto de sete “omeletas”, uma omeleta de omeletas, todas elas aliás de composição diversa além da brevidade temporal e da concisão dramática. (...)