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Mensagens

Um dos filmes a preto e branco mais verdes

«O filme transborda das habituais cadências descontraídas e sem juízos de Boetticher,» continua. «Mesmo os seus homens maus são irmãos de boa índole — permanecendo, em toda esta cordialidade, uma dura peça moral (para as personagens, não para nós, como numa fábula). Um filme doce sobre a vida comum (é impossível imaginar o assassínio, mesmo os cadáveres fora de quadro de Tall T  aqui), Black Midnight   deve ser um dos filmes a preto e branco mais verdes já feitos, certamente o mais verdejante em Lone Pine, com sequências empolgantes a céu aberto e puros voos a cavalo.»  Black Midnight , logo às 21H30, no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. 

De mãos na cinta e cachimbo na boca

 

Não combina com aquilo que sabemos

(...) Em certa passagem (11, 581, B), um dos personagens relata algo que ouviu de um megarense: a informação de que o "gênio" de Sócrates (seu daimon , a energia sobrenatural que o guiava e protegia) era, na verdade, um espirro: se alguém espirrava à sua direita, ou atrás, ou à frente, Sócrates sabia que devia agir; se o espirro viesse da esquerda, sabia que devia ficar quieto e não fazer nada (o mesmo personagem chega à conclusão, no andamento de sua fala, que a ideia toda é ridícula e não combina com aquilo que sabemos sobre Sócrates). Sócrates e o espirro, Kelvin Falcão Klein.

— Qu’est-ce que c’est que cette histoire ?

Fui acompanhar um amigo à inauguração da exposição dedicada à Jean-Luc Godard. Conhecendo Serralves, as minhas expectativas já eram altas, mas a experiência superou tudo. Parecia uma cena saída dos livros de Thomas Bernhard: perfumes, penachos e vaidade generalizada. Mas nem me vou deter nisso, basta reler o Bernhard para compreender a coreografia cultural — é igual em todo o lado. Por isso, em vez de crónica social, resolvi dedicar-me à gastronómica: o jantar em si mesmo. Foi no andar superior: uma sala ao fundo para as pessoas mais distintas e a da entrada para as restantes e serviço de copa. As mesas estavam atulhadas de velas como se fosse um velório (do cinema?) Os empregados moviam-se concentrados e nervosos (creio que havia alguém a supervisioná-los) para nos servirem sem serem notados — trabalhadores invisíveis é o objectivo das instituições culturais. Os nomes dos convidados estavam escritos num papelinho para não haver dúvidas do nosso lugar nem tentativas de subverter a

Maldição dos mortos

O Andy Rector contou-me que numa das sessões da Cinemateca, Tag Gallagher perguntou ao público se sabiam porque é tão tremendamente triste e trágico o último plano de O homem que matou Liberty Valance . Ele próprio ainda não conseguiu encontrar uma resposta clara. Acrescentou que era como se estivéssemos no comboio da civilização, mas não era bem isso que queríamos . É fácil argumentar que todo o filme tem essa amargura porque nos mostra que a democracia americana é construída sobre actos não muito dignos. No entanto, acordei de noite e isto veio-me de novo à cabeça e tomou conta da insónia. A minha resposta incorria num erro básico de perspectiva: uma vez que tinha abordado o filme de um ponto de vista político, não via o resto. Mas o comentário de Tag conseguiu desinquietar-me e obrigou-me a repensar. Não se trata apenas daquele plano, creio, é todo um bloco que começa quando Stoddard fecha a porta do barraco transformado em câmara ardente e vê a flor de cacto sobre o caixão

Comme un dialogue d’amoureux

Quero fazer (!) um livro composto unicamente de fragmentos, notas, aforismos. Pode ser um erro, mas essa fórmula está mais próxima da minha natureza, do meu gosto pelo inacabado, diga-se, do que os ensaios elaborados onde é preciso manter uma aparência de rigor às custas da verdade interna.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Até que enfim!

«Houve quem não perdoasse a ironia de Camilo. Contava o jornalista portuense Oliveira Alvarenga que, à passagem do funeral do escritor pelas ruas do Porto, a caminho do cemitério da Lapa, muitos lojistas, encostados às soleiras dos seus estabelecimentos, exclamavam, respirando fundo – "Até que enfim!"» Oliveira Guimarães, O Espírito e a Graça de Camilo . Citado no programa de sala de Amor de Perdição (TNSJ, 2024)
(...) De manhã, no início do 4º acto, Michaleen Oge Flynn interpreta mal a cama partida: « Impetuous! Homeric! ». Já que falámos de mitos, julgo que este comentário, que o cocheiro há-de repetir, é outro sinal de Ford para nos indicar por onde andam os seus interesses. Sean seria então um Ulisses que regressa à sua Ítaca de Innisfree onde encontra uma Penélope respondona e tem de lutar com um cunhado selvagem. Simetrias — os 5 actos nos filmes de John Ford, de Paulino Viota (página 106).

La mirada de John Wayne

Em «Simetrias — os 5 actos nos filmes de John Ford», Paulino Viota elogia os textos de Javier Marías sobre o realizador americano. Como estou sempre na disposição de me desviar do caminho traçado, fui procurá-los. O que Marías escreveu sobre o olhar de John Wayne depois de beijar Maureen O’Hara no cemitério é formidável ( El reino de la posibilidad , El País Semanal, 16 de março de 2014) . Eles estão encharcados pela chuva e colados um ao outro e apaixonados, sim. Mas há uma certa gravidade nos olhos de Wayne — como se tivesse encontrado e perdido não se sabe o quê nesse preciso instante —, qualquer coisa que é quase uma tristeza ( uma tristeza doce , diria Walser). Através desse olhar, percebemos como são complicadas as relações entre homens e mulheres. Como nos filmes Passion , de Godard. Ou em Onde Jaz o teu Sorriso? , quando Danièle (que é uma verdadeira mulher de Ford, como todas queremos ser) diz: Sicilia! ... se nos apaixonámos e nos apeteceu fazer o filme foi po

Influenciadores do século XX (letra B)

In den finsteren Zeiten / Wird da auch gesungen werden? / Da wird auch gesungen werden. / Von den finsteren Zeiten. Bertolt Brecht e Walter Benjamin a jogar xadrez em Svendborg (1934).

O pé ateu

Mudei de trabalho. Agora, do meu gabinete, que fica num antigo mosteiro beneditino, ouço o sino dos Clérigos a marcar as horas e, ao fim da tarde, pequenos concertos de carrilhão. Não consigo evitar: de repente, foge-me o pé ateu para a nostalgia do paraíso.
Sai do escuro e caminha / À nossa frente algum tempo / Amigável, com o passo leve / Da bem decidida, terrível / Aos terríveis.

In water

Ontem, por volta do meio-dia, em frente ao mar de Vila Chã, percebi um pouco melhor a estrutura interna d’ As Filhas do Fogo . A maré estava baixa e as ondas rebentavam suave e intercaladamente na areia em três pontos (e às vezes num quarto mais afastado e mais grave). Fechei os olhos. O diálogo passava de um lado para o outro e para o outro e assim sucessivamente. É um som eterno, persistente como uma marcha. Nota contra nota . Uma mulher que espreita, uma mulher que se levanta, uma mulher que caminha: Karyna Gomes, Alice Costa, Elizabeth Pinard. Três corpos num movimento colectivo. Quando tudo colapsa, nesse dia feio que se arrasta há séculos — é essa força de resposta que temos de reencontrar: qualquer coisa que trabalha nos intervalos; um movimento mútuo de não aceitação do destino; a teimosia do povo de Chã das Caldeiras (uma lição) . Ah, se a música conseguir ajudar-nos a transformar o sofrimento em alegria, como dizia Olga. Se conseguirmos um dia desemaranhar a nossa vi

Dos jornais IV

«Portugueses aderem em força a nova substância para dormir.»  «As pessoas querem é crisântemos bonitos.»  Há uma ligação misteriosa entre estes dois títulos do JN.
Destruir, diz ele .

A última cena

Quando as raparigas invadem a sala do Moulin Rouge para dançar (assim como A Regra do Jogo prevê e antecipa a guerra, French Cancan festeja desvairadamente o fim da guerra, que alegria tão distante, ai de nós!), Danglard fica nos bastidores a ouvir a musica à distância, sozinho.   Bom, sozinho até me lembrar de Straub no fim de Onde jaz o teu sorriso?

Ladainha

Andei a juntar os textos que escrevi sobre os filmes de Pedro Costa e dei-me conta daquilo que no fundo já sabia há muito: pareço aquele sem-abrigo a cantar Jesus’Blood Never Failed Me Yet.