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Mensagens

China my China

21 de Junho  Ontem disse à Doreen que o governo devia pôr à disposição da população uma sala ou um edifício onde as pessoas se pudessem encontrar, conversar, fazer discursos, desabafar. Ela respondeu-me que as mulheres na China antiga, quando estavam com raiva ou tinham alguma aflição, subiam a pequenos estrados, montados especialmente para elas na rua, e ali davam rédea solta à sua fúria ou à sua tristeza. Essa «prática» parece-me muito mais eficaz do que o método psicanalítico ou o confessionário. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

O último negativo

Gaza

Nunca compreendi a leviandade dos alemães e do mundo perante o crescimento do estado nazi, a aceitação da caça e extermínio de judeus, ciganos e todos aqueles que não encaixavam na proclamada superioridade física ou ideológica do regime. Por mais que leia, não compreendo como foi possível aceitar a maldita eficiência dos campos de concentração. Mas a história tem recuos espantosos e agora compreendo um pouco, apenas um pouco: não é connosco, não mexemos uma palha, nem sequer temos a curiosidade (ou os remorsos?) de Mr. Klein. Vamos ficar na história como um bando de gente muito indiferente e muito cruel que compactua com o intolerável. Temos um peso enorme às costas.

Filosofia em acção

Na sexta-feira de manhã tivemos formação sobre Inteligência Artificial generativa. Muito deslumbre sem justificação (só têm olhos para o raio da eficiência, quando é o contrário que é preciso) e, para finalizar, a ideia ingénua de que vamos voltar à filosofia e à Grécia antiga (aposto mais no deboche do império romano). Quando saí da sala, disse que no futuro seremos todos filósofos . À tarde encontrei esta notícia . Um belo raccord .

Ir ao mercado

Ouvido no mercado. Duas mulheres velhas e gordas prestes a terminar a conversa. Uma diz à outra: «Para se viver tranquilo, não devemos sair do rame-rame da vida.» Uma manhã destas, fui ao mercado (como todos os dias). Depois de dar três voltas, saí incapaz de me decidir por o que quer que fosse. Nada me tentava, não tinha vontade de nada. Em tudo, a escolha tem sido a minha perdição ao longo da vida. Noutro dia, no mercado, olhei por um instante para uma cabeça de boi cuja pele tinha sido arrancada. Os olhos, ou o que deles restava, deram-me um calafrio terrível. No mercado, uma mulher horrível, com cabeça de águia, começou a gritar comigo porque eu tinha acabado de passar entre ela e a banca. «Você não é educado. Um cavalheiro não deve passar à frente de uma mulher, etc.» Ela insiste. Fraqueza incrível da minha parte, tento justificar-me e enervo-me tanto como a mulherzinha. Nisso, como sempre, sensação de mal-estar físico. Decididamente, só morto alcançarei a indiferença. ...

O público espera que a história acabe mal

«Conta-se que Jean Gabin exigia antes de assinar um contrato para fazer um filme que o argumento contivesse uma cena em que ele se encolerizasse e matasse alguém. A história é provavelmente falsa, mas merece ser verdadeira. Não seria um capricho de vedeta, mas a consciência do seu personagem. Seja qual for o argumento do filme, Gabin não pode ter um destino que não seja o seu. Se fosse necessária uma prova suplementar do destino excepcional de Gabin, bastaria notar que ele é talvez o único ator do mundo diante do qual o público espera que a história acabe mal. Por conseguinte, Gabin tinha razão em exigir o ataque de fúria homicida, pois este constitui o momento significativo de um destino imutável, no qual o espectador reconhece, de filme em filme, o mesmo herói de uma Tebas suburbana e operária.» André Bazin, citado por Antonio Rodrigues.

Dos jornais XXIV

Numa reportagem de um canal de televisão, um homem disse que o que falta aos políticos é imaginação. Já passaram uns dias, mas são essas palavras e não outras que ressoam na minha cabeça.

Dos jornais XXIII

«Ontem de manhã, dia de eleições, fui repescar uma grandiosa frase de Salgueiro Maia que devia estar escrita na pedra. Numa altura em que, no País, se questionava se o povo tinha instrução e capacidade de fazer as suas escolhas nas primeiras eleições livres para a Assembleia Constituinte, o Capitão de Abril veio, numa rara entrevista em 1974, simultaneamente afastar partidarismos e resumir ao que vinha. “Não há limites para as possibilidades de opção, e se o povo quiser ir para o inferno, é para o inferno que iremos”, disse ao Expresso. (...)» Mafalda Anjos, CNN.

Pensar com as pernas

Desci Fernão Magalhães e depois fui da Senhora da Hora até ao Pedro Hispano a pé a ensaiar a aula sobre o filme de Ford. Que maravilha: as palavras circulavam na minha cabeça com uma fluidez espantosa — pareciam bolinhas de sabão. O problema é que quando páro, lá se vai a graça, meto os pés pelas mãos

O estado a que chegámos!

João Bénard da Costa: (...) Num filme, como em qualquer visão, é sempre preciso olhar segunda vez porque há sempre um fundo sobre um fundo e sobre outro fundo. Diz-se, e tem-se dito muitas vezes, que John Ford é um cineasta evidente; tudo se percebe à primeira vista. Se há filme que desminta totalmente essa teoria — todos a desmentem, mas neste flagrantemente — é Liberty Valance. É preciso ver muitas vezes para chegar a ver. Se há cineasta em que o campo é o mais profundo esse cineasta foi John Ford. Estas palavras do Bénard são tão certeiras. Estou a preparar a aula da próxima terça-feira sobre O homem que matou Liberty Valance e fico espantada com coisas que nunca tinha visto, por exemplo, o corte radical entre o plano da casa de Tom Doniphon a arder e a chegada de Ranson Stoddard a Capitol City. (A economia de meios é assombrosa, como é que Ford consegue dizer tanto com tão pouco? Como é que consegue ir à raiz da realidade? Que cinema é este?) Os 16:44 minutos seguintes da ce...