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Mensagens

Sindicato dos mortos

As coisas que ficam de fora das homenagens oficiais são sempre as mais interessantes. Por exemplo, gostava, mas gostava mesmo muito, de ouvir alguém a falar das condições de trabalho da Danièle Huillet e do Jean-Marie Straub: as dificuldades para conseguirem as câmaras e as objectivas necessárias, o dinheiro para a película e para o laboratório, as legendas feitas aos poucos mas bem feitas, os meses a preparar a leitura e a respiração, os orçamentos reduzidos mas geridos com extremo cuidado para poderem pagar o devido à equipa, ... — essas questões materiais e proletárias que foram tão marcantes nas suas vidas e nos seus filmes não entram nas salas dos museus. E também as portas que lhes fecharam na cara; talvez agora essas pessoas que, sem dúvida, ocupam lugares importantes em instituições de prestígio internacional, citem os seus nomes com um arzinho etéreo tentando sacar um pouco de prestígio alheio? O Musée d’Orsay não encomendou e depois recusou Cézanne ? Também é preciso contar...

Oráculo

O tempo arrefeceu e fui desenterrar do armário um casaco mais quente. Do fundo dos bolsos, saltaram duas máscaras dos anos da pandemia. Como os velhos adereços do oráculo numa tragédia.  A peste não vai acabar. E a guerra, como papagueiam os comentadores mais excitados, é «eterna».
Cézanne: Pinto as naturezas mortas para o meu cocheiro que as não quer. Pinto-as para que as crianças ao colo dos avós olhem para elas enquanto comem a sopa e balbuciam. Não as pinto para o orgulho do imperador da Alemanha nem para a vaidade dos comerciantes de petróleo de Chicago.
Começamos a saber o que é a solidão quando escutamos o silêncio das coisas. Então compreendemos o segredo enterrado na pedra e revelado na planta, o ritmo oculto ou visível da Natureza toda inteira. O mistério da solidão deriva do facto de para ela não existirem criaturas inanimadas. Cada objecto tem a sua linguagem, que deciframos graças a silêncios incomparáveis. Lágrimas e Santos, Emil Cioran. Edições 70, novembro 2022. 

Sardoniscas

Tirei uma semana de férias para tratar de assuntos importantes. Primeiro assunto importante: ler. De manhã, tento avançar umas páginas no segundo volume do diário de Gombrowicz , mas não me sai da cabeça a imagem das sardoniscas a atravessarem dois planos de A Morte de Empédocles , que vimos no domingo em Serralves. Na folha de sala, Jonathan Rosenbaum refere a «presença de um lagarto que atravessa o espaço na cena em que Empédocles liberta os escravos». Mas estou certo de que há pelo menos mais uma sardonisca num outro plano. Um mero acaso? Claro que não. O filme está vivo do primeiro ao último fotograma. Acabou-se. Ponto final. Posso voltar ao Gombrowicz.

Wenn dan der Erde Grün von neuem Euch erglänzt

É magnífico como Hölderlin transforma o alemão numa língua musical e leve (Straub talvez dissesse «arejada»). Agora os poetas não ligam muito a essa qualidade, mas ainda é uma das grandezas da poesia.  Pessanha faz isso com o português. E em Para Comigo ( reunião da sua poesia tal como a pretende preservar ), Joaquim Manuel Magalhães tem poemas que são verdadeiras ruínas de ruínas (é só pó e pedras), mas outros surgem quase como cantilenas e são belos e têm essa alegria sem afectação que só se encontra na natureza.

Segunda-feira

Jogo de futebol no Estádio River Plate. Com trinta mil espectadores. O sol aquece. De repente, sobre os camarotes, onde se fazia ouvir a algazarra da espera impaciente por uma luta renhida aparece um balão... Um balão? Todos podem ver que não é um balão, mas um preservativo grandemente insuflado pelo hálito indecente de alguém. O balão-preservativo, auxiliado pelas correntes de ar que ascendem do público acalorado, sobrevoa as cabeças e, quando cai, é levemente tocado pelas mãos dos brincalhões... e uma multidão de milhares de pessoas fixava o olhar neste escândalo flutuante, tão horrivelmente visível, tão flagrante! Silêncio. Ninguém se atreve a falar. Êxtase. Foi então que um padre de familia , indignado, o esfaqueou com um canivete. E ele rebentou. Assobios! Uivos! Uma raiva inacreditável explodiu de todos os lados — de perto e de longe —, e o aterrorizado «pai de família» esgueirou-se o mais depressa possível pela saída mais próxima, Quem mo contou foi Betelú Mariano, de alcunha Fl...

O teatro natural de Oklahoma

Este hipódromo é ao mesmo tempo um teatro e isto constitui um enigma. Mas o lugar enigmático e a figura clara e transparente de Karl Rossman encontram-se estreitamente ligados. Transparente, puro, talvez frouxo de carácter, é-o com efeito Karl Rossman, e é-o no sentido em que Franz Rosenzweig, no seu livro Stern der Erlosung , diz que na China o homem interior se acha «privado de carácter, o conceito de sábio, tal como desde Confúcio tem sido classicamente encarnado, apaga todas as possíveis particularidades de carácter. O que distingue o homem chinês é algo diferente do carácter: uma pureza de sentimentos elementar». Por mais que isso possa explicar-se teoricamente — a pureza de sentimentos talvez seja um equilíbrio excepcionalmente refinado do comportamento mímico —, a verdade é que o teatro natural de Oklahoma nos encaminha para o teatro chinês, que é um teatro de mímica. Uma das funções mais importantes deste teatro natural consiste em transformar o acontecer em gesto. É possível ...

— Alors, un petit supplement?

A exposição dedicada ao trabalho de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub parece uma actividade cultural de centro comercial. Puseram umas folhas verdes nos projectores de luz e todo o espaço ficou verde como uma alface. Não é assim que a terra deve brilhar — isto deixa ficar mal até o louco do Hölderlin. Há uns ecrãs espalhados pelas paredes verdes onde se podem ver excertos de alguns filmes da retrospectiva (nem sempre com legendas em português que, diga-se, não são grande coisa). E mais nada, nenhuma ligação aos escritores que eles leram e aos textos que filmaram. Nenhuma ligação aos cineastas e filmes que os marcaram e com os quais se relacionam. Nenhuma ligação às pessoas que filmavam com eles.  Nem encontros, nem diálogos, só aquela cor verde que alastra. Esta exposição podia chamar-se — Alors, un petit supplement ?

O Porto já não são tripas

Há uns seis ou sete anos, quando o vendaval do turismo e da gentrificação se abateu definitivamente sobre o Porto, surgiram um pouco por toda a parte, em grafítis e autocolantes, os slogans «O Porto já não são tripas», «Make Porto Podre again» ou «Porto Morto». Lembrei-me disto ontem, ao ver Vanitas , de Paulo Rocha, no Batalha. O filme é de 2004. Poucas vezes alguém mergulhou tão fundo na carne da cidade, na nossa carne, até às tripas. O Porto barroco, da morte e da terra molhada, dos fogos de Junho, do granito que nesse tempo transformava o dia em noite, do rio escuro, meio água meio lama. Esse Porto podre pertence já a outro mundo. Os próprios slogans perderam a força de um manifesto político e soam agora como um lamento, um canto fúnebre. Não apenas pela cidade soterrada sob os plásticos coloridos do turismo, mas por um Porto que já só existe na memória, no pó dos livros ou em certos filmes, como Vanitas .
Tenho óptimas discussões no fim dos almoços de fim-de-semana, quer dizer parecem óptimas como os sonhos coxos parecem óptimos enquanto estamos a dormir. Ontem, talvez por causa do arroz de cogumelos e do alvarinho (do Pingo Doce, pois sou mais operária do que presidente da câmara), acabei por confessar que me entristece ver um dos meus filmes preferidos de Huillet e Straub apresentado às três pancadas e que mais valia não convidar ninguém, dizer apenas: «Este filme é belíssimo e palpitante, vejam-no com atenção, mas sem preocupações analíticas, como se não soubessem o que é o cinema. E depois, se precisarem (vão precisar, claro, todos nós precisamos), vejam-no outra vez e leiam o Pavese e olhem à vossa volta e procurem os deuses as vinhas as fontes e os homens. O nosso agradecimento a Huillet e Straub não tem fim. Boa sessão.» Em italiano, soava melhor.

Destruir os clichés

Straub: Penso que devemos fazer filmes sem nenhuma significação, pois de contrário só se faz porcarias (...). É preciso que um filme destrua a cada minuto, a cada segundo, aquilo que dizia no minuto precedente, porque estamos a sufocar sob os clichés e é preciso ajudar as pessoas a destruí-los. Neste sentido, o último plano [de Othon ] não significa nada, é o que espero.  Nota: A resposta de Straub foi retirada de uma montagem de entrevistas organizada por Antonio Rodrigues para o catálogo da Cinemateca de 1998. A versão espanhola pode ser lida aqui .  Esta questão do significado dos planos, ainda para mais dos últimos planos, é recorrente e é, também ela, sem sentido. O que interessa não é o que significa (se for importante, não significa nada), mas de que modo essas imagens nos afectam, que sensações e pensamentos provocam, para onde nos desviam. É a tal «saturação de signos magníficos banhados na luz da sua ausência de explicação» de que falava Manoel de Oliveira e que Goda...

«Não tenho palavras»

Desde o dia 7 de Outubro, há um estribilho vindo de longe que atravessou trevas e sofrimentos para desaguar mais uma vez no discurso de muitos colunistas regulares ou esporádicos da imprensa: “Não tenho palavras”. Seríamos levados a pensar que se trata da confissão derradeira de um naufrágio linguístico do pensamento, ou do desespero que antecede o sucumbir, como acontece na ópera de Schönberg Moses und Aron, quando Moisés pronuncia a sua última réplica, que fez correr rios de tinta: “O Wort, du Wort, das mir fehlt!” (“Oh palavra, tu palavra, que me faltas”). Mas não, até agora não vi ninguém sucumbir depois de gritar publicamente o seu desespero linguístico; pelo contrário, essa afirmação antecede ou culmina quase sempre uma animada tagarelice. António Guerreiro, jornal  Público , 20 de Outubro de 2023.

A nossa fogueira ninguém a vê

A apresentação Da Nuvem à Resistência , pelo Álvaro Domingues, foi desastrosa: apanhado desprevenido (enrascado?) e sem saber o que fazer, teceu um breve e desinteressante comentário geográfico sobre as paisagens que vemos no filme. Uma situação lamentável — constrangedora para ele e para nós (ao nível do «eu é mais bolos» do Herman). Esta mania de tentar aproximar os filmes de Huillet e Straub a uma disciplina tem tudo para dar para o torto, aliás, numa entrevista, é o próprio Jean-Marie Straub que diz que a conjunção «e/e» é sempre uma estupidez: cinema e história, cinema e literatura, cinema e música, e assim por diante até ao fim do mundo, o fracasso intelectual... (depois acrescento o link)  Quando critico assim uma acção, obrigo-me sempre a responder ao outro lado:  — Ah é, e o que é tu farias no meu lugar?  Bom, para começar não me vejo a ocupar um lugar (nenhum lugar), mas posso fingir e atiro logo o nome do Antonio Rodrigues (por quem tenho um fraquinho cinéfilo ...

Um leitor desconhecido

Tiro um livro da estante. É um velho livro usado que talvez tenha comprado na Vandoma. Ou num alfarrabista, talvez. Não sei, não me lembro. Há frases sublinhadas, símbolos nas margens: setas, cruzes, pequenas circunferências. Releio as passagens que o leitor anterior sublinhou e destacou com sinais. O que é que ele viu e que eu não consigo ver? O que é que eu não percebo? Ou terei sido eu a sublinhar o livro e entretanto perdi a memória disso? Um leitor desconhecido ou eu próprio noutro tempo. A diferença não é nenhuma.
Que diremos (pergunta) se as coisas naturais — fontes, florestas, vinhas, campos — forem um dia absorvidas pelas cidades e desaparecerem, e apenas se encontrarem em frases antigas? Serão como os deuses antigos, as ninfas, a natureza sagrada que emerge dos versos gregos. Então a simples frase «havia uma fonte»  comover-nos-á. Cesare Pavese ( Il Mestiere di vivere ), citado por Manuel de Seabra no prefácio a "A Lua e as Fogueiras",  livros de bolso Arcádia, 1958 (tradução corrigida).