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A mostrar mensagens de junho, 2024

Uma espécie de emprego, uma escola ideal.

(...) Este mês de junho, a Cinemateca tem estado a passar os filmes da Regina Guimarães e do Saguenail: filmes que são só uma parte da prática deles de viverem ao mesmo tempo (ou de viverem o mesmo tempo) estes anos todos. Ora: estando no Porto, não pude ir a nenhuma sessão. (E a Regina não pôde vir conversar com a Odete, como faz todos os anos.) Mas vi que eles programaram, por entre os seus filmes, outros, de outras pessoas: filmes que conversam com os deles, que os provocaram. Acho que entretanto aprendi (também com eles, que programam filmes há anos e anos) que ver filmes, e vê-los como quem investiga um crime, é uma espécie de emprego: em que nos pagam em imagens e em faltas de ar. Por isso, quando penso em como seria a minha escola ideal (em que eu seria professor e aluno), só consigo pensar em algo deste género. Um lugar onde alguém (onde toda a gente) partilha (generosa, entusiasticamente) os seus amores, esperando que, ao partilhá-los, o entusiasmo por eles cresça: até não cab

Uma máquina em movimento

Cristina Fernandes: Num possível alinhamento dos seus filmes, Regina Guimarães e Saguenail apontaram um bloco a que deram o nome de Casas Ruas Cidades . É uma das formas mais convidativas para entrar na obra destes dois cineastas. Tem qualquer coisa de passagem arquitectónica e, sem dúvida, sempre, de político, no sentido grego da palavra. A sequência marca o percurso destes dois extravagantes-livres que trabalham juntos e com cumplicidade há anos, principalmente no Porto. (...) Rui Manuel Amaral: (...) Quando penso na obra de Regina Guimarães e Saguenail ocorre-me justamente a imagem de uma máquina em movimento. Uma estranha máquina de filmar-escrever tomada por essa «espécie de febre». Com paragens em cada filme e em cada livro, mas paragens breves porque há sempre mais caminho a fazer. Uma máquina em «Movimento Perpétuo», para usar o título de um poema do Caderno do Regresso (2010). E aqui retomo a ideia do jogo de espelhos entre cinema e poesia. A máquina Regina-Saguenail n

Concetta

No conto  Terra de Exílio , há uma personagem — engenheiro de obras públicas, de Turim — que é lançada, por razões de trabalho, «para o fundo da Itália». Uma terra pequena, no sul, junto ao mar. A sua missão é dirigir a construção de uma estrada. O tempo passa devagar. Arrasta-se. A certa altura, o leitor tropeça nesta passagem: «Uma vez o carniceiro chamou-me de parte. — Engenheiro, ponha dez liras e fica sócio. Domingo escrevo. A mercadoria chega na quarta-feira, e até sexta-feira, a qualquer hora que tenha vontade, é só bater três pancadas e tem o amor à sua espera. A lourita saltou do comboio numa tarde de vento e chuva, o carniceiro tapou-a com um guarda-chuva, outro pegou-lhe na mala, desapareceram no beco escuro, por trás da igreja. Toda a terra sabia, mas na estalagem continuou a falar-se apenas entre os de confiança, gabando-se o carniceiro que desse modo arranjaria mais algum cliente para Concetta. Alimentavam-na a carne e azeitonas, mas tinham-na fechada. Uns entravam, outro

O tempo do trabalho

«Dizem: Tati gasta dois anos para fazer um filme . Asseguro-vos, todavia, que trabalho todos os dias... quando vejo que alguém se prepara para fazer em trinta e sete dias um filme que custa trinta e cinco milhões, o que é que querem, não acredito. Não se pode, em trinta e sete dias, contar uma história muito importante.» in Nota de abertura. Catálogo Jacques Tati editado pela Cinemateca Portuguesa em 1987.

Aviso a um jovem poeta

Recomendar-lhe-ia, como poeta e espírito brilhante que deseja ser, a leitura dos grandes autores da Antiguidade porque, sendo como os macacos que catam a vermina na cabeça dos donos, verá que, tal como no bom queijo velho, é nos bons autores que os vermes abundam, e não nos novos; por isso, deve o meu jovem amigo manusear, constantemente, os clássicos, em especial os mais roídos pelos vermes. Mas com cuidado, não vá ter com os antigos o mesmo procedimento que têm alguns infelizes jovens que roubam quanto encontram nas algibeiras dos velhos progenitores. A sua ocupação não é roubar, mas aproveitar e fazer suas as ideias deles; o que, embora difícil, é, no entanto, bastante possível, sem incorrer na vergonhosa imputação de gatunice; penso, com toda a humildade, que, embora acenda a minha vela na do vizinho, isso não altera a propriedade, nem faz com que o pavio, a cera, a chama ou a vela inteira sejam menos meus.  Jonathan Swift, Preceitos para uso do pessoal doméstico e outros textos .

Os velhos deviam ser exploradores

(...) Old men ought to be explorers Here or there does not matter We must be still and still moving Into another intensity For a further union, a deeper communion Through the dark cold and the empty desolation, The wave cry, the wind cry, the vast waters Of the petrel and the porpoise. In my end is my beginning. T.S.Eliot, Four Quartets, East Coker.

Fellow Prisoners

O facto de os tiranos mundiais se situarem na extraterritorialidade explica a extensão do seu poder de vigilância, mas denota também a sua futura fraqueza. Operam no ciberespaço e moram em condomínios guardados. Não têm nenhum conhecimento da terra que os rodeia. Além disso, rejeitam este conhecimento como superficial, desprovido de profundidade. Para eles, só contam as matérias-primas que extraem. São incapazes de ouvir a terra. Quando pisam o chão, são cegos. No plano local, estão perdidos. Para os companheiros de prisão, é o contrário que é verdade. As celas tem paredes que alcançam o mundo inteiro. Os actos determinantes de uma resistência prolongada terão raízes no que é local, no local próximo e distante. Resistência do interior, ao escutar a terra. A liberdade está lentamente a ser descoberta, não no exterior da prisão, mas nas suas profundezas. Entretanto , de John Berger. Tradução de Júlio Henriques. Antígona. Outubro 2018.

Conselhos ao lacaio

Há famílias em que o senhor costuma mandar, muitas vezes, o lacaio comprar vinho à taberna. Aconselho-o a escolher a garrafa mais pequena que houver em casa; mas, seja como for, mande deitar coisa de um litro para si; terá a sua pinga e o patrão a garrafa cheia. Quanto à rolha não se incomode: serve o polegar, ou, então, uma bucha de papel sebento. *** Nunca traga meias ao servir à mesa, tanto pela sua saúde como pela das convidadas, atendendo a que a maior parte das senhoras gosta de sentir o cheiro dos pés dos jovens, que é remédio santo contra os gases. Jonathan Swift, Preceitos para uso do pessoal doméstico . Tradução de João da Fonseca Amaral.

Empreendimento de sonho

Sucedem-se as notícias sobre os crimes da Guarda Costeira grega, envolvendo pessoas que tentam chegar ao país para requerer asilo e que são abandonadas ou simplesmente lançadas ao mar, incluindo crianças. Em três anos, estão documentados 43 mortos. Ah, os encantos do nosso condomínio fechado, construído sobre as velhas ruínas e com vista para o mar…

ETs

Ouvido no 903, ontem, a meio da manhã: — Eles só não trabalham nem vão às compras como nós. Eles são seres vivos. Para ir à lua, a gente precisa de um capacete e eles não precisam porque respiram de outra maneira, de resto são seres humanos como nós. Eles conduzem. Eles só não trabalham nem vão às compras como nós. Eles são os E.T.s. 

Piloto automático

Targets , de Peter Bogdanovich. O tipo por trás da tela a disparar sobre os espectadores, no drive-in , é das imagens mais tremendas do cinema. A certa altura, o atirador mata o próprio projeccionista. A máquina de projecção continua a funcionar, o filme prossegue e a matança também. Tudo em piloto automático. Como se não existisse nada mais natural e inevitável neste mundo.

Regina e Saguenail

— Tenho um bocado de medo de me ver ao espelho , sempre tive. Ao mesmo tempo, fascinam-me os fenómenos especulares, nomeadamente as montras das lojas. Gosto dos espelhos quando eles nos devolvem sombras, quando nos devolvem presenças fantasmáticas – que é o que nós somos e nas montras se expressa perfeitamente.  — O pai do meu padrasto, isto é, o segundo marido da minha mãe, era um “poeta menor” do movimento surrealista, mas fez-me conhecer a poesia dos maiores. Conhecer e apreciar. E depois encontrei a Regina. Por isso, a poesia é, direta ou indiretamente, a nossa única, verdadeira, safa, inclusive porque há outra safa mais acessível, que é o humor, e a poesia não é nada incompatível com o humor.

A alegria de destruir

Haverá um dia, talvez, em que o historiador consentirá em lançar um olhar à História focado nas suas mais baixas formas de tédio. É o tédio que é a fonte das alterações súbitas, das guerras sem motivos, das revoluções mortíferas; não existe causa mais operante do que ele. Surge uma necessidade de sentir existir , de romper com a monotonia do ser, do puro imaginável; o assassínio, a vingança e a alegria de destruir por destruir circulam livremente num povo que, ainda há pouco tempo, parecia tranquilo e sábio, a suprema flor de uma civilização consomada. Os historiadores dirão depois que causas políticas, económicas e sociais explicam essa erupção; evidentemente, mas não atentaram no facto elementar de que esse povo se entediava.  Benjamin Fondane, A Segunda-Feira Existencial e o Domingo da História . Tradução: Diogo Paiva.

Saguenail e Regina

Os filmes de Saguenail são marcados por um forte experimentalismo formal, todos eles tratados preciosos sobre a possibilidade e o limite da “linguagem” cinematográfica – são filmes que perguntam o que é e o que pode essa linguagem.  (...) não sendo objetos diarísticos, os seus filmes estão ligados ao seu corpo, à sua presença e passagem pelos lugares, aos seus encontros, respondem-lhes, de um modo explosivo (explodem com as formas convencionais). Fazem na prática o que Regina defende quando escreve ou fala sobre cinema: reclamam um espaço para o rascunho na criação cinematográfica.

Observações avulsas sobre o bonfim #68

Agora, aos sábados de manhã, há sempre polícias no Campo 24 de Agosto. A semana passada eram mais de dez e vários carros e carrinhas azuis. Parecia uma zona de perigo. Perguntei o que se passava, disseram-me que se tratava de  uma acção de cosmética .  Ontem era só um carro e quatro polícias. Quando desci a Avenida Fernão de Magalhães para ir comprar fruta, estavam junto ao Pingo Doce a mexer nos telemóveis. Se calhar andavam à procura dos homens maus nas redes sociais.

Selfie XX

Já tenho uma fotografia oficial. É burocrática e até um bocado abstracta. Serve até morrer. Copiei o método de Thomas Pynchon. Também é para isso que a literatura e os escritores servem, para nos ajudar a lidar com os desafios sociais.
Mais uma peça para a lista de Lefebvre : Tararira , o filme mais absurdo do mundo, rodado por Benjamin Fondane nos anos trinta na Argentina e perdido sabe-se lá onde.

A alegria contra todas as evidências

Gosto muito desse filme do Dreyer, mas a maneira como vejo o seu final não é, necessariamente, da ordem da transcendência, mas sim da promessa, da alegria contra todas as evidências, da ideia de que embora finitos podemos ilimitar a finitude, de que há perante nós formas diferentes de desconhecido, e haverá sempre. E por outro lado, nesse final, quando ela se levanta na cama, e há um beijo, há um fio de baba que escorre da boca dela, ou uma lágrima, já não me lembro, um pequeno fluxo: aquilo é no limite ainda-terra, ela regressa à vida mas morrerá. E ela é da terra. Simplesmente o que ali encontramos é uma promessa cumprida e realizada.
No domingo, para além dos habituais de Ken Loach e um ou outro turista, havia um grupo de miúdos da Escola de Futebol Hernâni Gonçalves, devidamente equipados, na sala 2 do Batalha. Curtirmos imenso a sessão de  Tickets  e  Looking for Eric  e até houve palmas no fim — parecia que estávamos num estádio a ver um jogo. Faz tanta falta, o cinema como divertimento.
Se soubesse escrever contos, escrevia sobre a morte de Schönberg. O mais difícil era controlar a exuberância dos factos.

Influenciadores do século XX

Scott Bradley : The Twelve-Tone System provides the 'out-of-this-world' progressions so necessary to under-write the fantastic and incredible situations which present-day cartoons contain.

Ouro

A literatura argentina é um lugar estranho. O número de escritores muito bons ou extraordinários parece infindável. É como seguir um filão numa mina de ouro. Acabo de ler mais um que não conhecia: Isidoro Blaisten .

A hipótese da falha tectónica

Talvez a grande força do cinema não esteja em saber contar uma história, como tantos reinvindicam, mas em conseguir instaurar uma fractura estrutural catastrófica. Afastar-se do território manso das narrativas e caminhar para zonas mais insólitas nem é tanto uma coisa do futuro mas de um passado muito antigo e esquecido. (E é por isso que alguns filmes parecem obras de bruxas.)
 

Sistema de atracção de capital humano

Leio no jornal que uma das medidas do «Plano de Acção para as Migrações» do governo, que, na prática, impõe critérios discriminatórios na escolha das pessoas que podem entrar legalmente em Portugal, é «instituir um sistema de atracção de capital humano». O despudor com que os burocratas recorrem ao linguajar mais básico do marketing e da publicidade para se referirem a nós, o chamado «capital humano», provoca-me vómitos.

O capital humano

O capital humano levanta-se cedo e cansado. Com o calor, dorme pior. Os autocarros enchem-se de capital humano como sardinhas em lata. O capital humano instala-se nos escritórios, nas lojas, nos shoppings , nas fábricas, nas estufas de tomate. Ao almoço, a maioria do capital humano devora tupperwares . Algum capital humano vai ao restaurante. Ao fim do dia, o capital humano regressa a casa ou aos quartos alugados. Cheira dos sovacos, da boca, dos pés. Faz o jantar, come, prepara os tupperwares para o dia seguinte. Algum capital humano bebe um copo na esplanada e janta fora. Certo capital humano limpa as escadas e as casas de banho dos escritórios, das lojas, dos shoppings e das fábricas. A maioria do capital humano passa a noite a olhar para a televisão e para os telemóveis, e a desejar outra vida qualquer. Depois, deita-se. Levanta-se cedo e cansado. Com o calor, o capital humano dorme pior.

A mulher do camião

Fiquei surpreendida com os primeiros planos: poderia  Cathy   ser uma versão mais nova da mulher do camião?   A história segue o seu caminho e distancia-se, mas no fim, acho que sim — Cathy está a transformar-se na mulher do camião. Quando fechar os olhos.

‎مشق شب

Logo no início, quando filma os miúdos na rua a caminho da escola, Kiarostami diz a alguém que meteu conversa que o que está a fazer não é bem um filme, é mais um estudo ou uma pesquisa.  Trabalhos de Casa não segue as convenções, é verdade, mas é cinema — totalmente . Kiarostami começa por nos mostrar as técnicas básicas do ofício: iluminação, colocação da câmara, montagem campo-contracampo ( ternamente ). É na cena do pátio, porém, que nos damos conta da força do seu olhar cinematográfico: os rapazinhos são obrigados a entoar cânticos religiosos, mas querem é brincar e aquele ritual transforma-se numa gritaria; a determinada altura, Kiarostami corta o som e então, no silêncio forçado, percebemos o que se passa naquelas escolas ( tragicamente ).