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Mensagens

Na câmara escura (II)

Vesti a t-shirt vermelha que é quase igual à capa d’ A Imagem Fantasma , um rectângulo com um pouco menos de amarelo e brilho. Não foi de propósito, era a única que estava lavada e passada a ferro. Mas quando abri o livro no metro, percebi as manhas do inconsciente: caramba, estou com as luzes ligadas, vou destronar o cartaz do Cronenberg .  Não aconteceu nada, os turistas continuaram a segurar as malas e a mostrar panos de cozinha com galos de Barcelos.  Vou a meio, página 96. Quando estou a ler os livros que leio, às vezes penso, ah, sim, gostava de ter escrito isto, mas é muito raro e não mais do que um ou outro parágrafo porque não tenho ambições de escrita consecutiva. Com o livro do Hervé Guibert o descaramento é grave: queria ter escrito tudo, mais, queria ter a perspectiva dele, estar no seu exacto lugar, ser completamente ele.  Não sei como é que o Amândio conseguiu chegar ao fim da tradução incólume e calmo; se fosse eu, estava em maus lençóis.

Vai no batalha

É evidente que estou aqui a título de penetra. Preparei uma aula sobre o que gosto (ou gostava?) mais de fazer: rever filmes. Falo um pouco de Bresson e Godard para dar consistência, mas a ideia é explorar as malandrices e perícia de Hitchcock em três filmes: Janela Indiscreta , Os Pássaros e o maravilhoso Perigo na Noite .  Não parece, mas é — há-de ser — uma sessão para desanuviar (mais não seja porque não percebo nada de questões teóricas de cinema). E desviar, também, se conseguir.  Segui o método de Hitchcock e tenho tudo tão delineado que podia contratar alguém para ir dar a aula com menos irregularidades — uma loira bem penteada, de tailleur cinzento e olhar perdido é que era. O curso é barato, mas aviso já que a admissão é difícil que se farta (muito pior do que o exame de condução); convém ir à prova cheio de cinefilia.

Universo falhado

É a última anotação dos Cadernos . Não tem data, pode ser novembro ou dezembro de 1972. Nota-se que Cioran está cada vez mais ferido, pressente-se o declínio. A partir daí, é preciso atravessar um túnel escuro. «Sem a ideia de um universo falhado, o espectáculo da injustiça sob todos os regimes levaria até mesmo um indiferente à camisa-de-forças.»

Punho no estômago (I)

Num certo sentido, A Imagem Fantasma* é um livro difícil de ler, quer dizer, afecta-nos de um jeito avassalador logo a partir do primeiro texto. Pensamos que um tipo a escrever sobre fotografia vai focar-se em questões estéticas mais ou menos abstratas e isso é bom para repousar a vista e pensamentos mais intermitentes. Pois, talvez seja, mas não é o caso de Hervé Guibert; ele escreve com outra coisa mais dura para além ou antes das palavras, e expõe-se tanto que entra por nós a dentro, e já não há nada a fazer.  Por exemplo, Os Óculos de Ler o Pensamento é um parágrafo de nove linhas sobre uma invenção que encontrou na  Bibi Fricotin que o atraia e lhe metia medo ao mesmo tempo e faz uma passagem, que é um corte seco, para a fotografia — e é só. Pois sim, mas a partir daí sabemos que a fotografia é uma actividade arriscada. Nunca vi essas revistas de banda desenhada, no entanto quando era muito pequena (creio que ainda nem sabia ler) também tinha medo de uma máquina de ler...

Orações e lágrimas

Como se tentasse fugir à morte que o perseguia, Sancho abandonava a sua capital, Coimbra, e, residindo alguns dias entre os monges de Alcobaça, daí pedia aos vassalos e burgueses, não homens de armas para as batalhas, não ouro para se enriquecer, mas orações e lágrimas. Alexandre Herculano, História de Portugal , Vol. II, p. 116.

An alternative Porto

Texto num mupi publicitário, no centro do Porto: Neonia Coming soon An alternative Porto inside the real one. Não há melhor ilustração do «Porto real» destes tempos: uma coisa «alternativa» dentro de outra mais «alternativa» ainda. Uma fachada de plástico com néons a esconder o vazio. Simples simulacro publicitário. Apenas isso.

Mais exacto, mais coerente e mais humano

O melhor texto que conheço sobre O Cozinheiro, o Ladrão, a sua Mulher e o Amante Dela , foi escrito por Agustina Bessa-Luís. A propósito do ladrão e da cena final de canibalismo — e este é o ponto central do texto —, Agustina escreve: O ladrão é o homem, predador, fazedor de lixo, imundo nas palavras e nos actos. E o tirano absoluto, a quem o holocausto é oferecido para que ele prove o seu canibalismo. Só que em vez de se mostrar repugnado com o repasto humano, ele devia precipitar-se sobre o cadáver do livreiro e devorá-lo, cedendo à tentação de um bom acepipe. Isso era mais exacto, mais coerente e mais humano. Greenaway, porém, recua e torna o tirano impressionável. O estômago revolta-se ao provar o primeiro bocado do judeu letrado, que lhe reduzira a mulher e o privara de algum bocado da sua cozinha. Não é crível que se revoltasse, mas que comesse e chorasse por mais. Não é possível que ficasse intimidado, mas só suspenso de ganância e apetite desalmado, perante um bom prato com ceb...

Traições e vinganças literárias

Fiquei tão chateada com o Claudio Magris que arrumei o Danúbio por uns tempos (e logo agora que tenho um exemplar mesmo meu para sublinhar, anotar, estragar) e decidi em conformidade: em vez de me apaixonar pelo Magris, vou apaixonar-me pelo cão dele (parece que se chama Jackson) — é mais fácil chegar a consenso sobre ossos.  Nota: o Rui e a Tamina (foram eles que me ofereceram o livro) sabem do assunto e aconselharam-me a desenhar insultos obscenos na páginas em que Magris diz mal de Cioran. Vamos nisso!

Uma vida sem achaques

Nas páginas 482 e 483 de Danúbio , Magris zurze em Cioran de uma forma tão violenta que tive de ler três vezes os parágrafos para conseguir registar a informação. É das coisas mais tristes que há, começar a gostar de um escritor que desanca assim em alguém que admiramos. Parece uma traição, mas contra a qual nem sequer me posso enfurecer porque não é directa, quer dizer, só existe se me meter entre os dois, fora isso é um ataque vulgar. Magris fala de Cioran como um tipo que forjou uns pensamentos de escapatória, uma negação absoluta que não passa de um expediente cómodo para resolver todos os problemas no conforto da sua mansarda em Paris. Soa tudo tão vil e afastado da minha perspectiva que não consigo nem perceber nem, muito menos, aceitar. E o que é mais estranho é que nas páginas dedicadas à Panónia, aos bogomilos, ao que é ser magiar, reconheci tantas coisas que leio nas pequenas anotações de Cioran.   Entretanto, talvez para me poupar a penosos exercícios intelectuais, o co...

As lágrimas são mais salgadas

A grande literatura húngara não é a que celebra o esplendor de uma Hungria heróica, mas a que denuncia a miséria e as sombras do destino húngaro. O próprio Petőfi, cantor da pátria e do Deus dos magiares, fustiga o egoísmo inerte dos nobres e a indolência da nação. Endre Ady canta a «tétrica terra magiar», define-se como «tristemente magiar» e proclama que «os Messias magiares são mil vezes Messias», porque no seu país as lágrimas são mais salgadas e eles morrem sem nada ter redimido. Quem nasce na Hungria paga um tributo à vida, porque a Hungria — diz-nos outro poema — é um fétido lago da morte; os Húngaros desgastando-se são «os bufões do mundo» e o poeta carrega dentro de si, dorido, a planície melancólica. A literatura magiar é uma vasta antologia dessas feridas, desta sensação de abandono que induz os Húngaros a sentirem-se como diz uma poesia de Attila József, «sentados na borda do universo». László Németh, o chefe de fila dos escritores popularizantes, falou de uma condição de «...

Observações avulsas sobre o bonfim #56

Ontem reabriu o Café Saudade. Na segunda-feira foi a frutaria que fica em frente e nem sequer tem nome na montra. Juntamente com a paragem C24A1 dos STCP, formam uma espécie de trindade identificária da zona (um enclave na marca Porto. ) Não é fácil definir as características deste lugar mas talvez se possa dizer, sem grandes preocupações, que é cosmopolita, não tanto pelos turistas, mas pelos imigrantes, pela diversidade de faixas etárias (muitos velhos e crianças), géneros sexuais e mentais, etc.; de certa forma corresponde a uma primeira página do Correio da Manhã ao vivo (na frutaria parece que andam todos — empregados e clientes — com uma navalha no bolso); e demonstra que o povo nunca deixou de existir, apenas já não pensa nas expectativas. Um outro tipo de Bartleby.

A escada

24 juin   Variations Goldberg … Après ça, il faut tirer l’échelle.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  A expressão francesa significa que se atingiu o máximo, não se consegue fazer melhor. Podemos meter o dicionário no bolso e ir por aí com segurança: «… Depois disto, não se fará melhor». Ou então, realçar uma certa renúncia que está implícita (e é bem cara a Cioran) e contrapor, com alguma malícia, uma expressão do tipo: «… Depois disto, mais vale arrumar as botas».  Mas, na verdade, continuo a pensar na escada e também (e acima de tudo) no gesto de a deitar fora  ( com extrema secura ): «... Depois disto, deitar fora a escada».
Cheguei ao fim de 1971, só falta um ano para o fim, trinta e tal páginas.  31 dez. 1971 Esta noite, pesadelo grandioso, desproporcional, vertiginoso.  Acordei a chamar pela minha mãe...  Quanto a dizer em que consistiu esse pesadelo, sinto-me incapaz.  1º Janeiro de 1972  Tristeza constante que me parece inútil analisar. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Um jogo para desfrutar

Uma pessoa lê um texto da Agustina. É um exemplo. Uma coisa curtinha como Cave Canem , escrito em 1968 (tinha ela 46 anos). São duas páginas. A pessoa lê e conclui, mais uma vez, que nunca passará de um aprendiz de feiticeiro. O que resta? A pessoa lembra-se daquele conselho que os treinadores de futebol das equipas pequenas e remediadas dão aos jogadores antes de um desafio com uma equipa de milionários: «É um jogo para desfrutar.» É um bom conselho para o eterno aprendiz de feiticeiro: «Desfruta.» Não é pouco.

Um recadinho amoroso

Conheci escritores obtusos e até mesmo estúpidos; todos os tradutores que conheci eram, sem excepção, inteligentes e muitas vezes mais interessantes do que os autores que traduziam. (Há mais reflexão na tradução do que na «criação».) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (outubro de 1971)

O Porto em Agosto

Em Agosto, o vento acha-se mais à vontade. Está livre de obrigações: não há chuva, nuvens, nada. Entra pelas casas como se tudo isto fosse de papelão. Voam cortinas e fotografias, as portas batem com estrondo, sombras uivam debaixo da escada. Talvez Kafka tenha sonhado com o Porto em Agosto quando lhe apareceu o primeiro Odradek.
Viena não era infame como a representava Karl Kraus, e provavelmente a Roma Antiga não era como a pintava Juvenal, mas sem a exasperação furiosa de Kraus ou de Juvenal não teriam sido desveladas, como pelo violento rasgar de um véu, certas expressões extremas, certas deformações anormais que o rosto do Homem pode assumir. Danúbio, de Claudio Magris. Tradução de Miguel Serras Pereira. Quetzal.

O velho demónio

À noite fomos ao Trindade ver A Máquina de Matar Pessoas Más , de Rossellini, que passava na Sala 1. À mesma hora, na sala ao lado, a Sala 2, estreava Retratos Fantasmas , de Kléber Mendonça Filho. O raccord perfeito. O velho demónio das imagens ainda tem pernas para passar as noites a saltar de uma sala para a outra e fazer das suas.