Othon é um filme violento. Não só são violentas as tramas que se urdem no império romano pela luta pelo poder — quem irá suceder a Galba? — mas toda a forma como Danièle Huillet e Jean-Marie Straub levantam o texto de Corneille.
Filmar ao ar livre, nos montes Capitólio e Palatino em Roma, cenas que são de gabinetes e corredores onde é normal esconder as intenções ou até mudá-las em função das oportunidades do momento é, talvez, o primeiro acto arrojado. Ameaças, traições, cinismo, casamentos de conveniência, todas essas intrigas que descrevem o comportamento de uma classe dirigente apodrecida na sua imponente ambição, vistas assim, ao sol e ao vento, entre a vegetação, as pedras e as fontes, sobranceiras ao ruído do trânsito da cidade, parecem-nos mais reais e mais aflitivas e também mais intoleráveis — não há escuridão para esconder o gesto vil nem veludos para abafar o som das palavras hipócritas.
E se essa determinação abre a urgência do filme, tudo o que se segue investe ainda nesse caminho bravio com uma intensidade que atordoa. Se por um lado Huillet e Straub são fiéis ao texto, alteram o seu ritmo de um modo espantoso. Não é a estruturação clássica em verso declamado que nos oferecem, mas um colectivo de ritmos diferentes, cada actor (e convém lembrar que a maior parte não são actores profissionais nem franceses) tem uma musicalidade que lhe é própria e avança assim recitando não só as falas das personagens mas também a sua realidade presente. Imaginem a dificuldade de decorar toda a tragédia de Corneille e, para mais, de a debitar tão depressa em pleno sol de agosto. Imaginem a concentração que é necessária para desdobrar esta batalha verbal.
Pois bem, é também essa tensão subjacente que Huillet e Straub registam e, num certo sentido, é ela que força a nossa adesão ao filme. As condições de trabalho transformaram-se em condições de cinema. Já não é apenas um texto que ouvimos. Graças ao sotaque de cada um e à respiração refundada (uma das características mais potentes e revolucionárias da dupla, a juntar ao uso de som directo), os versos alexandrinos ganham uma densidade física, uma rugosidade que nos obriga a pensar.
E se é verdade que desde sempre nos acomodamos a uma indiferença que não nos permite pegar nas armas necessárias para depor um sistema viciado — conforme tantas vezes Straub defende — devemos pelo menos seguir o apelo de Luís Miguel Cintra e aprender a traduzir esses dois versos, encostá-los à nossa vida e fazer de novo vibrar as estruturas de um império que nos subjuga:
Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer
ou
Peut-être qu'un jour Rome se permettra de choisir à son tour.
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