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Amores proibidos

A ideia de que Arandir e o rapaz atropelado mantinham uma relação amorosa secreta é uma ficção criada pelo repórter Amado. Um amor proibido, revelado à beira da morte , é o pretexto mais do que perfeito para vender jornais às massas: «Escuta, rapaz! Eu vou vender jornal pra burro!» Mas a história só funciona porque é credível. A tradição literária está carregada de amores impossíveis, à luz da «moral vigente» em cada momento. Amores condenados, cuja solução reside na morte dos amantes, ou pelo menos na de um deles. A relação entre Arandir e o rapaz atropelado – não importa se real ou inventada – é um dos elos da longa cadeia de amores proibidos, que forma o nosso imaginário e que inclui Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Werther e Charlotte, etc., etc. Essa é uma das chaves mais simples de O Beijo no Asfalto : nem todos os beijos são felizes, e daí o seu fascínio.

Paixão

Quando o repórter Amado Ribeiro descreve ao delegado Cunha o beijo que Arandir deu na boca do rapaz atropelado, a personagem usa duas vezes a palavra «ajoelha-se» . Mais à frente, Aprígio, o sogro de Arandir, descrevendo à filha o mesmo episódio que ele também testemunhara, repete a palavra: APRÍGIO ( realmente confuso ): Teu marido correu na frente de todo o mundo. Chegou antes dos outros. ( com uma tristeza atônita ) Chegou, ajoelhou-se e fez uma coisa que até agora me impressionou pra burro. SELMINHA: Mas o que foi que ele fez? APRÍGIO ( contido na sua cólera ): Beijou. Beijou o rapaz que estava agonizante. E morreu logo, o rapaz. Não é um acaso, com certeza, mas um gesto símbólico que Nelson Rodrigues quer sublinhar. Um gesto que tem algo de sagrado: o momento em que a vida e a morte dão um beijo na boca; em que mundos opostos, o verso e o reverso, se tocam através de um sopro. Arandir ajoelha-se sobre o rapaz atropelado, toma-o nos braços, beija-o, e a realidade, como num milagr...

O Príncipe Desencantado

AMADO: Olha. Agorinha, na Praça da Bandeira. Um rapaz foi atropelado. Estava juntinho de mim. Nessa distância. O fato é que caiu. Vinha um lotação raspando. Rente ao meio-fio. Apanha o cara. Em cheio. Joga longe. Há aquele bafafá. Corre pra cá, pra lá. O sujeito estava lá, estendido, morrendo. CUNHA ( que parece beber as palavras do repórter ): E daí? AMADO ( valorizando o efeito culminante ): De repente, um outro cara aparece, ajoelha-se no asfalto, ajoelha-se. Apanha a cabeça do atropelado e dá-lhe um beijo na boca. O Beijo no Asfalto , à boa maneira walseriana , começa com um acontecimento que é o avesso de um conto de fadas. Na Bela Adormecida , o Príncipe quebra o encanto e desperta a princesa do seu sono profundo – imagem da morte, diziam os antigos – com um beijo. Na peça de Nelson Rodrigues, o beijo que Arandir pousa na boca do rapaz atropelado sela a morte deste. Quem desperta de um indolente e tranquilo sono da existência é Arandir. O beijo dado ao moribundo, em pleno asfalt...

Ácido nítrico com láudano

A fé iluminista na razão, nos factos da ciência e no progresso técnico, revelou-se manifestamente exagerada. O mistério nunca desapareceu, as emoções mais profundas estão vivas, os velhos demónios divertem-se. O edifício racional está sempre esburacado: basta um pequeno nada para que tudo se desfaça em pedaços. A luz e a sombra, o bem e o mal, são o verso e o reverso da existência. Isto dito assim é um truísmo. E, no entanto, ainda somos capazes de nos chocar com as histórias de Nelson Rodrigues . Muitas delas, de resto, inspiradas em casos concretos publicados nos jornais ou que o autor conheceu, na primeira pessoa, enquanto repórter policial. Neste ponto, tudo parece uni-lo a Félix Fénéon. Certas «notícias em três linhas» podiam ser sinopses de peças ou romances de Rodrigues: A mulher deixara-o. O Sr. Bassot, de La Garenne-Colombes, tentou asfixiar-se com carvão vegetal. Está à morte em Beajoun. Os jogos de amor em Béziers: Corniod, que vivera sete anos com Rosalie Petit, trespassou...

Este não é teu rosto

VIZINHO ( numa mesura ): Às suas ordens. D. EDUARDA ( apontando para o rosto do vizinho ): Mas este não é teu rosto – é tua máscara. Põe teu verdadeiro rosto. VIZINHO: Com licença. ( O vizinho põe uma máscara hedionda que, na verdade, é a sua face autêntica. ) D. EDUARDA: Agora fala. Nelson Rodrigues, Senhora dos Afogados .

Rindo chorando

As personagens de Nelson Rodrigues riem quando choram, e choram quando riem. Os moralistas não têm moral, os beatos e as beatas não são santos nem santas, os castos estão «roucos de desejo», os pulhas não são «canalhas integrais», os poderosos (pequenos ou grandes) não são inocentes e os criminosos têm uma certa candura. O que os une é o medo. O grande medo, o medo da morte: fonte da vida, íntimo combustível para a imaginação e o prazer.

O negócio é o seguinte

Não é o que sabemos sobre nós próprios, mas o que preferimos não saber, o que tentamos desesperadamente esquecer. É sobre isso que Nelson Rodrigues escreve. Uma luz fria apontada ao escuro. Tudo o que está na sombra é desvelado na sua crua nitidez: todas as “pequeninas tatuagens”, obsessivas, impossíveis de apagar.

Fracasso

Leio Nelson Rodrigues e tropeço numa passagem tipicamente  walseriana : «Estava diante do espelho, fazendo a barba, e pensava: “Dane-se a posteridade. Não faz mal que eu seja esquecido.” Mais um pouco e digo para mim mesmo: “Quero ser esquecido.” Naquele momento, eu percebia, com implacável lucidez, que essa disposição era vital. Tinha que receber o fracasso com desesperada alegria suicida. Um dia, o Paulo Francis veio me entrevistar. Dei as minhas respostas por escrito; e terminava assim: “Quero ser esquecido para sempre.”»  ( Memórias: A Menina Sem Estrela , p. 276.) A ideia de fracasso, de auto-apagamento, não é um simples capricho literário, mas um projecto de resistência «vital». Para alguns, é a única maneira de conservar a fúria de viver e escrever.