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Já não vale a pena fazermos o cinema da esperança socialista. Da esperança capitalista. Já não vale a pena fazermos o cinema de uma justiça por vir, social, fiscal ou outra. O cinema do trabalho. Do mérito. O cinema das mulheres. Dos jovens. Dos portugueses. Dos malianos. Dos intelectuais. Dos senegaleses. 
Já não vale a pena fazermos o cinema do medo. Da revolução. Da ditadura do proletariado. Da liberdade. Dos vossos fantasmas. Do amor. Já não vale a pena. 
Já não vale a pena fazermos o cinema do cinema. 
Já em nada acreditamos. Acreditamos. Que alegria: acreditamos: em nada. 
Já em nada acreditamos.
Já não vale a pena fazermos o vosso cinema. Já não vale a pena. Temos de fazer o cinema do conhecimento disso: de não valer a pena. 
Que o cinema vá para o inferno, é o único cinema. 
Que o mundo vá para o inferno, que vá para o inferno, é a única política.


O Camião. Textos de Apresentação. Primeiro Projecto. Marguerite Duras (tradução revista).

Comentários

boa tarde disse…
eu fiquei muito tempo pensando em como traduzir esse trecho. plus la peine. on croit plus rien. em português ele não funciona. talvez ele não queira funcionar. porque ela abandona o negativo já na primeira frase: o negativo claro e definido: não. e o português não tem essa duplicidade.

o on croit plus (-) vira on croit (+). o plus la peine (-) talvez vire também plus la peine (+). é como o final do l'argent, charles péguy. é o mesmo resultado inesperado
c disse…
É difícil, ainda não me decidi, mas publicar aqui ajuda-me a rever melhor.

Fica um português um bocado escangalhado, parece mais a língua da senhora da camião do que da Duras.
c disse…
A tentação é cortar todos os “já”.
Bom dia disse…
mas como fazer que não haja contradição entre "Não se acredita" e "Acredita-se"? É um achado: "On croit plus rien. On croit." É uma descoberta. E no português isso não existe! No inglês ainda há uma solução simples: "We believe nothing. We believe." (Ao menos nesse ponto. O plus la peine já é outra história.)
Eu nem tinha intenção de traduzir coisa alguma, mas esse problema ficou me atormentando um punhado de dias sem que eu encontrasse uma resposta sequer
c disse…
Em francês, a construção é extremamente simples e o resultado fortíssimo.

Em portugês não conseguimos as duas coisas juntas.
Pode-se forçar um bocado, mas perde-se a simplicidade, a vulgaridade:

Não vale a pena fazer o cinema da esperança socialista. Da esperança capitalista. Não vale a pena fazer o cinema de uma justiça por vir, social, fiscal ou outra. O cinema do trabalho. Do mérito. O cinema das mulheres. Dos jovens. Dos portugueses. Dos malianos. Dos intelectuais. Dos senegaleses.
Não vale a pena fazer o cinema do medo. Da revolução. Da ditadura do proletariado. Da liberdade. Dos vossos espectros. Do amor. Não vale a pena.
Não vale a pena fazer o cinema do cinema.
Já em nada acreditamos. Acreditamos. Alegria: acreditamos: em nada.
Já em nada acreditamos.
Não vale a pena fazer o vosso cinema. Não vale a pena. Tem de se fazer o cinema do conhecimento disso: de não valer a pena.
Que o cinema vá para o inferno, é o único cinema.
Que o mundo vá para o inferno, que vá para o inferno, é a única política.
boa noite disse…
Eu acho que está bem. Funciona!

Mas é mesmo qualquer coisa. É como descer uma escada. Joie : on croit : plus rien.
Este comentário foi removido pelo autor.
Não obstante a menor correcção, o realce do carácter coloquial (a voz imaginada) de um texto fá-lo por vezes mais pungente (vivo?). Ler em voz alta sem o primeiro "já", poderá, porventura, estar mais correcto (ou, embora mais regrado, igualmente correcto), mas torna o texto mais confinado, torna-o mais (+) "poema/epitáfio", menos (-) "manifesto" (que, afinal de contas, acaba por ser poema - revelando-se, por isso mesmo, na sua assertividade, menos lapidar). Às vezes, não morrer é só que é preciso - mas será isso estar vivo?
c disse…
Os textos que compõem o livro O Camião são pequenos; os diálogos, os textos de apresentação ou projectos, e a entrevista, mas são lixados de traduzir. Estou sempre a mudar tudo. Tens razão, o «já» dá mais energia ao texto. Tenho de decidir tantas coisas e estou cheia de dúvidas — que maravilha!