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Oh, uma ocorrência literária!

Ando há mais de uma semana a tentar escrever sobre os “Cadernos de Bernfried Järvi” e não consigo. Enquanto estava a ler o livro, talvez por simpatia, assaltavam-me ideias fulgurantes, mas depois da última página, depois nada. Quase uma afasia; as ideias foram perdendo a força, as palavras revelam-se desajustadas. Passa tudo ao lado. Tento uma e outra vez. O nevoeiro alastra. Não é fácil fazer frente a este livro, não é um livro qualquer, não é um livro à toa.

Pelo contrário, posso afirmá-lo sem rodeios: este livro é literário e tem um passado! E basta isso para o tornar marginal, suspeito e até perigoso (é necessário acrescentar uma tarja vermelha, diria Pagreus).

O problema são as provas, a linha cronológica existe mas vejo-a toda enrodilhada (falta-me discernimento) Mais do que uma crítica literária, os “Cadernos de Bernfried Järvi” pedem um bom detective, alguém que saiba controlar os adjectivos, um mapa de três dimensões, cervejas ou café, uma lupa, algumas nuvens e menos dispersão (vá, arruma-te). Mesmo assim vou tentar relatar o que aconteceu. 

O carácter geográfico. Posso começar por aqui (todos os pontos se desenrolam de A a P, diria Milo). Aachen é uma cidade independente alemã; uma linha oblíqua liga-a ao Porto — pouca gente saberá disto —, trata-se de uma linha literária profunda, antiga, cheia de raízes meteorológicas. Isto significa que Benfried Järvi é primo de Tristam Shandy e de Leopold Bloom, do poeta assassinado, e de Amadis Dudu, entre muitos outros (alguns, ainda não mencionados, de língua alemã) que andam pelas ruas, de um lado para o outro, a alvoroçar as pedras. A literatura é uma festa contínua. O que explica o prazer da leitura? De onde vem esta alegria? Ah, bom, isso agora, vou ter de pensar três vezes.

Nos “Cadernos de Bernfried Järvi” as personagens percorrem ruas estreitas, um pé na cidade (qual?) outro na narrativa, arrastam as sombras, dão cambalhotas, sentam-se em cafés e em autocarros, pregam-nos partidas. A vida quotidiana ganha um alcance dinâmico, o rame-rame é derrotado por palavras e gestos inesperados, a monotonia transforma-se numa aventura fantástica; podem chover martelos e unhas, uma grua afinal é uma aranha. O que se escreve existe agora e para sempre, cresce como a sequóia de Vertigo. E ouve-se constantemente uma música (de onde vem esta música, Ariel?)

Ah, factos?

A capacidade de trabalhar as palavras, tratá-las com cuidado e deixá-las ganhar significados e expansão — pequenos insectos amestrados, imaginem. É a primeira coisa que se sente ao ler o livro de Rui Manuel Amaral, uma seta que nos atravessa com amor e sordidez. Não é apenas o tempo de escrita do livro, é tudo que está para trás, as leituras, os ensaios, as repetições, as hipóteses, os exercícios, uma tarefa minuciosa e constante, as correcções, os passeios, uma total imersão na literatura. Adivinho a cabeça do Rui cheia de palavras em movimentos acrobáticos — mas já lá vamos.

Estava a chegar ao fim dos “Cadernos de Bernfried Järvi” quando encontrei uma frase reveladora: “qualquer coisa brilha como uma minúscula pepita de ouro.”

O livro tem tantas pistas, mas esta é exemplar: nove palavras numa ordem perfeita, como se cada uma delas fosse uma rapariga numa prova de natação sincronizada. Têm todas o rosto de Else. Ora aí está.

[A natação sincronizada exige habilidades de primeira ordem na água ao exigir força, resistência, flexibilidade, benevolência, arte e o sincronismo preciso, sem mencionar o controle excepcional da respiração quando estiver de cabeça para baixo na água.]

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