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A vida é terrível, mas muito divertida.

Acontece quando Lisa se encontra com Bruno; acho que é nessa altura que Iris Murdoch resolve agitar as coisas. Só nos apercebemos disso indirectamente e um pouco mais tarde porque na verdade não vemos o que se passa com os nossos olhos e o caso criado por Iris Murdoch é de “ver para crer”. 

Danby, que presenciou esse encontro entre Lisa e Bruno, é o primeiro a ver outra Lisa e fica tão transtornado que a procura, aborda-a na rua, puxa-a para o lado (nota etimológica: seduzir vem do latim seducere que quer dizer "levar para o lado") e depois, já dentro do cemitério, diz que a ama, que viu e acredita. Mais tarde escreve numa carta: É uma coisa muito diferente dos afectos corriqueiros e insignificantes e da simples vontade de ir para a cama com alguém. Sinto neste caso uma espécie de destino. É uma paixão desse tipo: exaltada, plena, orgulhosa. Parece que Danby está a entrar para uma ordem religiosa, que compreendeu o mistério do universo.

Ora bem, esse encontro de Danby com Lisa (como é que se diz mise en abyme em inglês?) é visto do outro lado da rua por Miles, cunhado de Lisa, e o fenómeno repete-se. A partir daí também Miles  não a freira falhada nem o pássaro de asas partidas, mas outra Lisa (ah, como é difícil ver coisas, Miles) e percebe pela primeira vez na sua vida como depende dela, como a ama acima de tudo — ela é a tal. Também Miles cai nessa ratoeira espiritual — aquilo a que convencionamos chamar amor louco, um amor evidente e sem razão, um amor fora dos gonzos, um mecanismo sensorial que vive essencialmente da fé e da desmesura. 

Danby e Miles só conseguem ver Lisa de outra forma, isto é como objecto de amor absoluto (aquela alegria negra voltou a invadi-lo, alongando-lhe o corpo estendido num tormento de êxtase), quando ela está perto da morte. Da primeira vez, Bruno — velho, disforme, doente terminal — representa a morte; a seguir a morte é representada pelo cemitério. É a morte que potencia a revelação do amor — Murdoch gosta de questões clássicas (aprofundar com as meditações de Miles na igreja, no capítulo vigésimo primeiro). 

Ainda não sei o que vai acontecer para a frente (Iris Murdoch é perita a dosear a suspensão e os imprevistos), mas o vigésimo segundo capítulo é um portento de humor, algures entre Shakespeare e Howard Hawks. Em apenas doze páginas, acompanhamos Danby num percurso que podemos, talvez, resumir como os tombos e arranhões sucessivos de um homem muito apaixonado e um bocado bêbado e tem o seu apogeu quando Danby se intromete no jardim da casa de Miles: é noite, chove, Danby espreita por uma fresta das cortinas.

(...) Arrastou cautelosamente os pés para a frente e pôde então ver o interior da divisão. O cenário era pacífico. Miles e Diana estavam sentados em cadeirões de ambos os lados da lareira onde ia ardendo um parco lume. Lisa estava sentada um pouco mais atrás no sofá, virada para a janela. Danby controlou a respiração e, com uma mão forte, susteve a aceleração do seu coração que já batia violentamente. Miles, que tinha as costas meio voltadas para Danby, estava a levantar a cabeça do livro. Olhou primeiro para a cabeça curvada de Diana e depois para a cabeça curvada de Lisa. No momento em que Diana começou a levantar a cabeça, Miles devolveu a atenção ao livro. Diana olhou primeiro para a cabeça curvada de Miles e depois para a cabeça curvada de Lisa. No momento em que Lisa começou a levantar a cabeça, Diana devolveu a atenção ao livro. Lisa olhou primeiro para a cabeça curvada de Diana e depois para a cabeça curvada de Miles. No momento em que Miles começou a levantar a cabeça novamente, Lisa devolveu a atenção ao livro. (...) 

Esta coreografia de olhares furtivos e cabeças curvadas é uma das especialidades de Murdoch. Parece que as personagens estão num palco e fazem estas coisas para provar que a vida é terrível, mas muito divertida.  

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