Quando o repórter Amado Ribeiro descreve ao delegado Cunha o beijo que Arandir deu na boca do rapaz atropelado, a personagem usa duas vezes a palavra «ajoelha-se» . Mais à frente, Aprígio, o sogro de Arandir, descrevendo à filha o mesmo episódio que ele também testemunhara, repete a palavra: APRÍGIO ( realmente confuso ): Teu marido correu na frente de todo o mundo. Chegou antes dos outros. ( com uma tristeza atônita ) Chegou, ajoelhou-se e fez uma coisa que até agora me impressionou pra burro. SELMINHA: Mas o que foi que ele fez? APRÍGIO ( contido na sua cólera ): Beijou. Beijou o rapaz que estava agonizante. E morreu logo, o rapaz. Não é um acaso, com certeza, mas um gesto símbólico que Nelson Rodrigues quer sublinhar. Um gesto que tem algo de sagrado: o momento em que a vida e a morte dão um beijo na boca; em que mundos opostos, o verso e o reverso, se tocam através de um sopro. Arandir ajoelha-se sobre o rapaz atropelado, toma-o nos braços, beija-o, e a realidade, como num milagr...
de Cristina Fernandes e Rui Manuel Amaral