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Dois passageiros numa carruagem de comboio

Numa carruagem de comboio, viajam dois passageiros. Um deles não tem um braço. É maneta, portanto. Quer dizer, é aleijado. Defeituoso, tolhido. Privado da harmoniosa proporção, obra enganadora da natureza, erro de formação. Imagino como lhe será difícil andar de bicicleta. Não é impossível, mas é difícil.
Como terá ele perdido o braço? Presumo que por uma série de desafortunadas circunstâncias. Vitima de uma tragédia terrível numa noite escura. Salvo talvez da morte por um milagre. Podia entregar-me agora a mil reflexões penosas sobre as mil maneiras de perder um membro, mas não quero alongar-me neste ponto. A respeito de tais assuntos, o mais seguro é sempre não dizer nada.
Há outro tópico importante que talvez mereça mais atenção. O tópico é este: onde estará o braço neste momento? O que andará a tramar? Um braço sozinho, sem ninguém a vigiar. Um descalabro. Só de pensar nisso sinto-me doente. Imaginem-no, a pavonear-se nas ruas, nos cafés, nas esplanadas, a saltar daqui para acolá, um fulano bastante deplorável, colérico, brutal, um incorrigível mestre a esbanjar dinheiro, um temperamento intratável, senhor das mais perversas extravagâncias. Estão a seguir-me?
Se soubesse história, demonstraria que o mal sempre surgiu de braços que têm vida própria. Secos como o champanhe e duros como a pedra. Deveria dizer (mas não digo) que muitas vezes se dá mais valor à malícia e à força bruta de um braço do que à inteligência e à delicadeza. Eis o triunfo da insolência considerada como uma das Belas Artes. Mas agora não vale a pena trazermos tudo isso a lume.
Numa carruagem de comboio viajam, pois, dois passageiros. A um falta-lhe um braço, a outro faltam-lhe ideias para continuar esta história.

Comentários

Anónimo disse…
Joguei andebol durante vários anos. Um dia inesquecível foi quando defrontei uma equipa que tinha um jogador só com um braço. Antes do jogo comentávamos como é que ele iria receber a bola! Pois bem, recebia sem dificuldade e jogava muito. Se me contassem não acreditava.