Penso que não há dúvida alguma quanto à vocação cristã de Baudelaire, mas é bom lembrar que há um abismo entre essa vocação e o que se poderia entender como sua atuação cristã. O que mais desconcerta no tocante a essa questão é perceber a fáustica oscilação de Baudelaire entre Deus e o Diabo, o que o leva amiúde à prática das mais ingênuas e primitivas formas de maniqueísmo, o que se agrava devido ao uso que fazia o poeta de termos litúrgicos inadequados e cujo exato sentido ele decerto não chegou a compreender. Por isso mesmo, sempre que abordam temas religiosos, seus poemas acusam uma dupla impertinência: a da linguagem e a das noções expressas por essa linguagem. Há que se entender ainda que Baudelaire não era propriamente uma anima naturaliter christiana, e sim uma anima naturaliter religiosa, capaz, portanto, de criar uma religião particular que nenhuma relação guardasse com a religião tradicional, como acontece no poema “As litanias de Satã”, no qual o poeta estabelece um estranho gnosticismo neopagão e maniqueísta. Baudelaire tinha uma noção muito aguda do conceito de pecado original, bem como uma idéia muito clara e vital da redenção, mas seu cristianismo é dilacerado e dilacerante, além de subjugado por um dualismo que em parte lhe explica o dilemático perfil de anjo e demônio. Dentre os ensaístas católicos que lhe analisaram a obra, parece-me que T. S. Eliot foi um dos que mais perto chegaram do nervo da questão, quando sustenta que o satanismo baudelairiano poderia constituir uma oblíqua via de acesso ao cristianismo, já que, considerado em si próprio, ou seja, dissociado de sua parafernália imagística e conceitual, esse satanismo não deve ser entendido como simples afetação, e sim como uma tentativa de alcançar o cristianismo pela porta dos fundos. É isso o que se vê no medonho espetáculo da crucifixão encenado por Baudelaire no poema “Uma viagem a Citera”, pois que aí o papel principal não cabe àquele que morreu na cruz para nos salvar, mas sim ao que nela deveria padecer para condenar aquele que não nos salvou.
Ivan Junqueira.
de Cristina Fernandes e Rui Manuel Amaral
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