Às dez da manhã, um senhor gordo, com barba, de fato um pouco amarrotado, apercebeu-se de que tinha o dom de fazer milagres. Bastava um gesto muito simples: fazer deslizar o polegar da mão direita pelas pontas do indicador, médio e anelar da mesma mão. Naturalmente, da primeira vez acontecera por acaso, e curara um gato aflito, instantaneamente. Tratava-se de milagres, não de «realizações de desejos». Quando fez aquele gesto e pediu dinheiro - precisou a importância, bastante razoável - não aconteceu nada. Tinha de ajudar alguém. Curou uma criança, acalmou um cavalo, aplacou as fúrias de um louco homicida, manteve em equilíbrio uma parede que ameaçava cair sobre avós e netinhos. Repugnante: não havia outra palavra. Jamais teria acreditado que ser taumaturgo fosse tão - como dizer? - cheap. O ponto a favor do senhor gordo era só um, mas importante: não era um crente. Não era, propriamente, ateu, pois não tinha um espírito filosófico; mas as religiões, todas elas, davam-lhe nojo. E por que razão lhe coubera precisamente a ele esta história dos milagres? Admitindo que tal facto provasse a existência de um Poder supremo, de que poder se tratava? Deuses havia-os às dúzias, e meios deuses, demónios, duendes, fantasmas. Não lhe interessava fazer milagres. Tratava-se de quê? De uma brincadeira? De uma tentativa para o converter? De uma maneira de «o confundir»? O senhor gordo estava agastado. Quando chegou ao quadragésimo milagre e se deu conta que algo começava a transpirar, decidiu mexer-se. Foi assim que entrou, com viva relutância, na igreja de um bairro onde não fizera nenhum milagre, e enfrentou um padre. Foi claro: precisou não só que não era crente, mas que aqueles milagres podiam vir de um Deus absolutamente diferente do que era adorado naquela igreja. O padre não mostrou espanto. «Não é o primeiro caso», disse, «embora entre nós nunca tivesse ocorrido. Casado?» «Não.» «Por que não vai para padre?» «Mas se eu nem sequer sou crente», replicou. «E quem o é, hoje em dia? Está a ver, o senhor faz milagres: se fosse matemático, dir-lhe-ia que fosse engenheiro.» O penúltimo milagre do senhor gordo foi converter o padre e levá-lo à penitência; o último, anular-se a si próprio, para que o padre se convencesse de ter sido miraculado. Este último milagre foi muito apreciado pelos peritos.
Giorgio Manganelli, Centúria. Tradução de António José Pinto Ribeiro.
Próximo sábado, 4 de Junho, pelas 17h00, no Gato Vadio.
Giorgio Manganelli, Centúria. Tradução de António José Pinto Ribeiro.
Próximo sábado, 4 de Junho, pelas 17h00, no Gato Vadio.
Comentários