Avançar para o conteúdo principal

Debaixo da pele

O grande motor da tragédia é a morte. Ao contrário dos deuses, nós morremos e somos presa fácil de todos os seus caprichos. Mas se a morte é a nossa grande tragédia, é também o nosso ponto de fuga. O fim de tudo. O que acontece em Tatuagem, de Dea Loher, é que a morte ganha vida, reproduz-se e avança como um cancro. A tatuagem está inscrita pelo lado de dentro, no avesso da pele, não se pode arrancar senão arrancando o próprio coração. Não existe fim para a tragédia em Tatuagem.


Primeiros indícios

Uma família de quatro pessoas vive encerrada no interior de quatro paredes, um segredo quadrado, “a incurável doença da gaiola”. O pai Wolf, a mãe Juli, e as duas filhas adolescentes, Anita e Lulu. Os indícios começam aqui. O pai é o lobo (Wolf); a mãe é uma espécie de cão fiel do pai (Juli dos Cães), incapaz de ladrar e de mostrar os dentes; Anita é a filha mais velha, vítima silenciosa dos abusos sexuais do pai; e Lulu, a filha mais nova e rebelde.





Segundos indícios

Wolf é padeiro. É com o seu pão que alimenta a família. A família “onde cada um dos elementos está bem/ onde cada um tem direito àquilo que quer/ e onde não falta nada a ninguém/ porque o pai é o abastecedor de todos eles.” É impossível não pensar no pão da tradição cristã, o pão nosso de cada dia, que simboliza o corpo e a carne de Deus Pai: "Eu sou o pão vivo (...). Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão, que eu hei-de dar, é a minha carne"  (João 6:51).

Juli é cabeleireira de cães e vive como o mais obediente dos cães: “posso dizer que gostava de ser um cão/ sendo que um cão não pode dizer que gosta de ser um cão/ e nem sequer pensar que gosta de ser um cão.” Usa uma máscara no rosto em vez do focinho. Só a retira quando Wolf lho ordena ou quando ele não está presente. A máscara impede-a de falar e, sobretudo, de pensar. A sua relação com Wolf é como a de um cão para o seu dono. O cão de Deus. É só isto.





Para a vida toda

Anita é violada uma e outra vez pelo pai e não tarda a ficar grávida. A tatuagem irremediável que jamais será removida: “a marca/ para a vida toda/ o sinal paterno/ que nunca se apaga.” A morte cresce no interior de Anita, “o susto” que leva consigo “aonde quer que vá”, uma “semente de medo/ indestrutível”, que “pesa no coração”. Uma sombra viva “com um olho diferente do outro”. Quando Paul entra em cena, com as suas flores e pólens e vislumbres de Primavera, sol ameno, e a promessa de um novo começo para Anita, ela é incapaz de uma ligação plena: “Há qualquer coisa/ dentro de mim/ que não me deixa/ pertencer/ a mais ninguém.” Paul é a quarta vítima de Wolf.





Lulu

Lulu, a filha mais nova, parece uma espécie de reencarnação da personagem homónima de Frank Wedekind. “É entrar, é entrar no antro das feras” (Wedekind, O espírito da terra). Também a Lulu de Wedekind e o pai, Schigolch, têm uma relação que ultrapassa a estrita ligação filial.

LULU
O que quiseres! O que eu tiver!

SCHIGOLCH
Faz quase dez anos que não estamos os dois.

LULU
Se for só isso? - As vezes que quiseres!

Frank Wedekind, A caixa de pandora, Acto II.


Tal como a Lulu de Wedekind, a de Loher ambiciona mais do que “ficar sentada atrás dumas grades/ à espera”, acha-se “uma profissional”: “Se me dão umas notas simpáticas/ porque é que eu não havia de aceitar (...) e se alguém me quiser prender/ sejas tu/ ou um outro cabrão qualquer/ eu mato.” Mas, já se sabe, Lulu foi criada para alimentar a tragédia e nenhuma delas se salva porque nenhuma mulher tem esse direito:

Minha ferazinha não sejas afectada!
Nem tola, artificial, de muitos acenos,
Mesmo que os críticos te elogiem menos.
Não tens o direito, a miar, gemer,
De retorcer o arquétipo da mulher,
Com caretas e trejeitos de ofício,
Estragar a inocência infantil do vício.

Frank Wedekind, Espírito da terra, Prólogo.





No fim está o princípio

De modo que nos aproximamos do fim, que é o mesmo que o princípio, tal como a coleira redonda de um cão. As negras sementes foram lançadas e germinaram. E dessas sementes outras germinarão, tão negras como as primeiras.


WOLF
Preciso de ti agora
Vais substituir a mãe
Falta a mão de uma mulher
Sobretudo agora
que a Lulu
tem a barriga redonda

ANITA
A Lulu

WOLF
Pois a Lulu
Tu tiveste mais cuidado
não foi
Com ela
a primeira massa a entrar no forno
deu logo bolo
Portanto pega na criança
e faz as malas
Quero ter a família
por perto
Filhos
e filhos de filhos.


Tatuagem, de Dea Loher, pela companhia A Turma e encenação de Manuel Tur. Em cena no Teatro Carlos Alberto até 29 de Outubro.

Comentários