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Um abismo

FÜRST: Não se pode chegar junto dele [do Governador]. Vive em outro mundo. Ignora-nos. Para ele somos como formigas. Tal como nós matamos uma formiga com o pé, assim ele pode matar um homem do nosso povo.
M. SENTADO (meditativo): Sabe o que penso, senhor Fürst?
FÜRST: Diga.
M. SENTADO: Que é como se não fosse um homem.
FÜRST: Claro.
M. SENTADO: Como se fosse... uma espécie de aranha.
FÜRST: Isso mesmo.
M. SENTADO: E que se pode matar como a uma aranha. Sem que tenhamos remorsos.
FÜRST: Tal e qual. Como ele nos mata a nós.
M. SENTADO: É bom saber isso.
FÜRST: Porquê?
M. SENTADO: Para o caso de chegar a ocasião. Agora que sei isto, penso que não vacilaria. Que lhe estouraria a cabeça e iria beber um copo de vinho e conversar com os amigos em alguma taberna. Não me tremeria o pulso. Talvez sentisse só um pouco de nojo. E o senhor? Também o mataria?
FÜRST: Eu?
M. SENTADO (insistente): Se ele estivesse na sua frente e o senhor tivesse uma arma... matava-o?
FÜRST (por fim): Não. A minha tarefa... é pensar por vocês. A vossa... é a de actuar por mim. Eu penso para que os vossos actos não sejam crimes. Vocês actuarão para que o que eu penso não seja pura filosofia. Compreendes?
M. SENTADO (olha Fürst com fixidez e diz gravemente): Compreendo que nos corresponde a nós manchar as mãos com o sangue, senhor Fürst. (Olham-se como se de súbito, se tivesse aberto um abismo entre eles e tentassem em vão aproximar-se.)
FÜRST: Não me trates por "senhor". Trata-me por companheiro.

Alfonso Sastre, Guilherme Tell tem os olhos tristes. Tradução de Egito Gonçalves.

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