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120 dias que nunca acabam

Não sei bem o que escrever sobre a versão de Os 120 dias de Sodoma, de Milo Rau, mas preciso de o fazer. Preciso de parar o mundo por um instante para conseguir pensar melhor. Que coisa foi aquela que vi no teatro? O que aconteceu naquele palco? Que verdade terrível aqueles actores lançaram-me à cara com uma violência difícil de suportar? Como é que mexeram com os dedos pela minha parte de dentro? Como torceram a minha carne? A versão de Pasolini, tal como se diz a certa altura, é composta por figuras de luz. É cinema. No teatro, porém, os actores estão vivos, têm cheiro, transpiram e movem-se à nossa frente. A ficção veste pele humana.

Jules Janin escreveu, em 1834, na Revue de Paris: «Não se iludam, o Marquês de Sade está por toda a parte, vive em todas as bibliotecas, numa prateleira misteriosa e tão oculta que sempre se descobre.» Se tivesse de resumir tudo numa frase, talvez escolhesse esta de Jules Janin. Quanto mais escondemos Sade nas prateleiras do fundo, mais ele se torna visível. Quanto mais fingimos que o fascismo acabou em 1945, mais ele nos morde os calcanhares e o pescoço. Quantos de nós escolheriam ter um filho com uma deficiência, digamos Trissomia 21, se o pudessem evitar com um aborto, mesmo que bastante tardio? E essa escolha não é fascista?

Os actores do Theater Hora, de Zurique, são dos últimos seres humanos com Trissomia 21 a pisar este mundo. Que espécie de higienização é esta em que todos escolhemos participar? Quem é sacrificado todos os dias, crucificado uma e outra vez e outra ainda, para nos salvar, para vivermos a nossa falsa normalidade, sem pecado? Quem tem o direito de apontar o dedo? Quem tem voz para o fazer?

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