Para desanuviar de tantos romances e falsos poemas atabalhoados, deitei a mão ao Crocodilo que Voa. Nem sabia se teria coragem para ler as doze entrevistas de seguida; achei que ia despachar a introdução, passar os olhos pelo resto e devolver. Mas não, vai tudo de enfiada, com elevada concentração e prazer.
O texto do João Pedro George é certeiro, apresenta uma perspectiva sobre a obra e a vida de Luiz Pacheco lúcida e sem maneirismos (fiquei com vontade de ler Extravagante, excéntrico, raro, de Carlos Castillo del Pino, aliás todo o livro La extravagancia). Conhecia João Pedro George do blogue esplanar e, mais recentemente, dos primeiros parágrafos das crónicas na revista Sábado; sempre lhe apreciei a frase firme e o pensamento solto, agora tenho de estar atenta à chegada da biografia à biblioteca (“Puta que os pariu!”, também da Tinta da China).
Em relação às entrevistas, Luiz Pacheco explica muito bem o que se passa: “... eu tenho um balanço, um pé muito bem calçado de entrevistas... sabes como é que eles fazem? Vêm com o que leram das outras entrevistas e as perguntas são sempre as mesmas... eles têm lá no ficheiro... antes de virem falar comigo eles não vão ler as minhas obras completas... nem as encontravam... De entrevista em entrevista é sempre a mesma chapa, vêm com perguntas de chapa.”
Porém, e isso deve-se, sem dúvida, à seleção dos textos (mais um ponto para o João Pedro George pela escolha e organização) consegui, lendo de rajada, empurrar, com algumas gargalhadas, a má língua, picardias e tropelias para um plano mais recuado e trazer para a frente outras coisas que se destacaram pela repetição e me interessam. A saber:
O ano fantasma entre o liceu e a faculdade, durante o qual Luiz Pacheco frequentou aulas à socapa, deu explicações de latim e devorou livros na biblioteca: “Li o Gil Vicente todo, em português e castelhano, o Fernão Lopes, o Garcia de Resende e outros.”
Pergunto-me se este método, forjado por um Luiz Pacheco miúdo cheio de pica, não terá sido uma das principais razões da sua escrita ágil e rica. A imersão na matéria-prima (até posso afirmar que se trata de um sistema materialista para o chatear um bocado, que ele também merece levar porrada) em vez dos cursos que se fazem agora de escrita criativa? Atribuir a Luiz Pacheco propriedades pedagogas é uma ideia um bocado torcida, mas agrada-me. Talvez seja possível juntar isto às aulas de bicicleta, senhor ministro?
E também a sua actividade exemplar de editor e verdadeiro homem dos livros (em termos de conceito, distinto, ou até a milhas, de “homem das letras”).
— Muito por dentro do que se passava nas tipografias: papéis, formatos, capas, tiragens (era corrente, naquela altura, imprimirem 2000 exemplares). Outra vez a matéria, Pacheco já não se livra da qualificação materialista, se acrescentar “dialéctica” à frase ainda arrisco ser amaldiçoada.
— Métodos arrojados de vendas clandestinas: um esquema de postais de correio de resposta paga (RSF) para encomendar o livro à cobrança, isto nos anos 50, vejam bem, sem rede.
— Extremo cuidado com as traduções: “O Céline era cortado, sabotado, como o Giono... mas eu escrevi aquele texto, sobre a Viagem, porque só tinha esse livro em casa. Era o único, de bolso, no original, em francês. Já tinha lido partes da tradução e fiquei muito chateado. Viagem ao fim da noite? O fim da noite é o dia... Devia ser: Viagem ao fundo da noite.” (Ler também a página 119 sobre Tchékhov.)
— Uma atividade meticulosa de caçador de gralhas e revisor picuinhas.
— E, por fim e com uma vénia para o atarantar, um jeito tremendo de olheiro para o que vale a pena imprimir.
O texto do João Pedro George é certeiro, apresenta uma perspectiva sobre a obra e a vida de Luiz Pacheco lúcida e sem maneirismos (fiquei com vontade de ler Extravagante, excéntrico, raro, de Carlos Castillo del Pino, aliás todo o livro La extravagancia). Conhecia João Pedro George do blogue esplanar e, mais recentemente, dos primeiros parágrafos das crónicas na revista Sábado; sempre lhe apreciei a frase firme e o pensamento solto, agora tenho de estar atenta à chegada da biografia à biblioteca (“Puta que os pariu!”, também da Tinta da China).
Em relação às entrevistas, Luiz Pacheco explica muito bem o que se passa: “... eu tenho um balanço, um pé muito bem calçado de entrevistas... sabes como é que eles fazem? Vêm com o que leram das outras entrevistas e as perguntas são sempre as mesmas... eles têm lá no ficheiro... antes de virem falar comigo eles não vão ler as minhas obras completas... nem as encontravam... De entrevista em entrevista é sempre a mesma chapa, vêm com perguntas de chapa.”
Porém, e isso deve-se, sem dúvida, à seleção dos textos (mais um ponto para o João Pedro George pela escolha e organização) consegui, lendo de rajada, empurrar, com algumas gargalhadas, a má língua, picardias e tropelias para um plano mais recuado e trazer para a frente outras coisas que se destacaram pela repetição e me interessam. A saber:
O ano fantasma entre o liceu e a faculdade, durante o qual Luiz Pacheco frequentou aulas à socapa, deu explicações de latim e devorou livros na biblioteca: “Li o Gil Vicente todo, em português e castelhano, o Fernão Lopes, o Garcia de Resende e outros.”
Pergunto-me se este método, forjado por um Luiz Pacheco miúdo cheio de pica, não terá sido uma das principais razões da sua escrita ágil e rica. A imersão na matéria-prima (até posso afirmar que se trata de um sistema materialista para o chatear um bocado, que ele também merece levar porrada) em vez dos cursos que se fazem agora de escrita criativa? Atribuir a Luiz Pacheco propriedades pedagogas é uma ideia um bocado torcida, mas agrada-me. Talvez seja possível juntar isto às aulas de bicicleta, senhor ministro?
E também a sua actividade exemplar de editor e verdadeiro homem dos livros (em termos de conceito, distinto, ou até a milhas, de “homem das letras”).
— Muito por dentro do que se passava nas tipografias: papéis, formatos, capas, tiragens (era corrente, naquela altura, imprimirem 2000 exemplares). Outra vez a matéria, Pacheco já não se livra da qualificação materialista, se acrescentar “dialéctica” à frase ainda arrisco ser amaldiçoada.
— Métodos arrojados de vendas clandestinas: um esquema de postais de correio de resposta paga (RSF) para encomendar o livro à cobrança, isto nos anos 50, vejam bem, sem rede.
— Extremo cuidado com as traduções: “O Céline era cortado, sabotado, como o Giono... mas eu escrevi aquele texto, sobre a Viagem, porque só tinha esse livro em casa. Era o único, de bolso, no original, em francês. Já tinha lido partes da tradução e fiquei muito chateado. Viagem ao fim da noite? O fim da noite é o dia... Devia ser: Viagem ao fundo da noite.” (Ler também a página 119 sobre Tchékhov.)
— Uma atividade meticulosa de caçador de gralhas e revisor picuinhas.
— E, por fim e com uma vénia para o atarantar, um jeito tremendo de olheiro para o que vale a pena imprimir.
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