Cada rua de Paris é como uma noveleta cheia de incidentes e isenta de moral.
Também há ruas tão pequenas que parecem coexistir, na sua materialidade de pedra e cimento, com a vergonha e a modéstia próprias da sua condição de notas de rodapé urbanístico. Essas não se confundem com uma ficção: são frases, interjeições, fragmentos, aparas de madeira, trocos esquecidos no bolso do casaco.
As próprias fachadas, os algerozes, as portas, os marcos de correio, os sinais de trânsito, existem numa harmonia cuidada, mas sobretudo eloquente.
Os objectos nas montras das lojas também servem com naturalidade de pasto para os apetites narrativos que se encontrem à solta, para todas as ocorrências da mais poderosa pulsão de todas, que é a de fazer sentido e de narrar.
Rue Ernest Cresson. Alimentação geral. As cores vivas das latas de bebidas, alinhadas como um exército. Tomates, cenouras, couves-de-Bruxelas, chalotas.
Alguns passos mais adiante: cabeleireiro para damas e cavalheiros. Frascos de loção, boiões de gel, aerossóis de laca.
Uma loja de revenda de artigos em segunda mão. Demasiado fácil. O respigador ambulatório de factos e de objectos não ousaria pedir tamanha diversidade. Uma iogurteira, uma batedeira, um ferro de engomar, CDs de Nicolas Peyrac e Serge Lama, blusas de senhora, caixinhas para medicamentos de inspiração japonesa, camafeus, brincos, argolas de guardanapo, livros de bolso, números antigos da revista Esprit. (Folheio um destes; as margens de todas as páginas estão anotadas com uma caligrafia fina e paciente.)
Se um cataclismo engolisse Paris de um dia para o outro, e se, por um fenómeno extravagante, apenas os objectos deixados nas montras das lojas se salvassem para as gerações futuras, como será que os vindouros reconstruiriam as histórias pequenas e grandes dos habitantes da cidade? Não duvido de que seriam capazes de produzir enredos grandiosos, engenhosos, comoventes. Acima de tudo, enredos autênticos. Os alinhamentos de artigos por detrás do vidro da montra, aleatórios ou planeados com esmero, dirigem-se àquele que passa, ao citadino no seu percurso quotidiano de A para B, procuram seduzi-lo, coincidir com o seu estado de espírito. Tendem naturalmente a identificar-se com os seus anseios, com os seus fantasmas. São os seus intérpretes mais fiéis, os menos dados a falsos pudores ou exageros.
Rue Bullard. Uma escola, no passeio do lado oposto. Consulto a ementa da semana. Concordo com algumas coisas, discordo de outras.
Apetrechos de iluminação: candeeiros, abat-jours, gambiarras, lâmpadas avulsas, lustres.
Logo adiante, artigos para a cozinha: pratos, tigelas, conchas de sopa, travessas, tachos, cafeteiras, esteiras, pegas, caixas para o pão em folha-de-flandres ou em madeira de pinho.
Esses cronistas do passado teriam perante si uma das tarefas mais ingratas. As vidas que eles tentariam reconstituir, com base na cornucópia de achados arqueológicos à sua disposição, seriam forçosamente pletóricas, ricas, absurdamente cheias de variedade. Vidas impossíveis, saturadas de acções capazes de ligar numa cadeia longuíssima uma tão grande densidade de objectos, como numa litania.
Meto por uma transversal, quase por instinto. Rue Daguerre. Aqui predominam as lojas de artigos alimentares, quase todas com mercadoria exposta na rua. Os artigos perecíveis têm poucas hipóteses de alcançar a posteridade. Mas não é de excluir que um aluvião de latas de bebidas e de talheres de plástico forrasse as profundezas dessa Paris pós-apocalíptica.
Uma loja de molduras, coisas robustas. Resistem ao tempo. Evocarão inevitavelmente as imagens que enquadram, menos capazes de resistir aos elementos.
A diversidade, uma diversidade levada a um extremo tão absurdo como esta de Paris, pode trazer embriaguez, mas traz também o desencanto frio e pesado do dia seguinte. São demasiadas coisas e texturas, demasiadas oportunidades de descrever e nomear. Nenhuma narrativa ou vida alguma vez as esgotará.
Mas todas estas ruas insistem em simular uma promessa permanente de sentido e coerência, a hipótese de um vislumbre fugaz que emergisse do marulhar feroz de sons e imagens e que (devo ousar a palavra?) tivesse significado.
“Isenta de moral” (escrevi). É exacto. Este é terreno inóspito para os arrufos entre o bem e o mal. E é assim que deve ser.
Olho para o céu, tento procurar o zénite por cima do asfalto da rua. Mas perder-me neste fragmento de imensidão azul não me ajuda a esquecer a topografia. Estou na demasiado familiar Rue Gassendi. Sei que me basta virar na primeira à direita para avistar ao longe a estátua do Leão de Belfort, que consigo avistar da janela de casa.
O Leão de Belfort, de Alexandre Andrade. Abril de 2016. Relógio d’Água.
Também há ruas tão pequenas que parecem coexistir, na sua materialidade de pedra e cimento, com a vergonha e a modéstia próprias da sua condição de notas de rodapé urbanístico. Essas não se confundem com uma ficção: são frases, interjeições, fragmentos, aparas de madeira, trocos esquecidos no bolso do casaco.
As próprias fachadas, os algerozes, as portas, os marcos de correio, os sinais de trânsito, existem numa harmonia cuidada, mas sobretudo eloquente.
Os objectos nas montras das lojas também servem com naturalidade de pasto para os apetites narrativos que se encontrem à solta, para todas as ocorrências da mais poderosa pulsão de todas, que é a de fazer sentido e de narrar.
Rue Ernest Cresson. Alimentação geral. As cores vivas das latas de bebidas, alinhadas como um exército. Tomates, cenouras, couves-de-Bruxelas, chalotas.
Alguns passos mais adiante: cabeleireiro para damas e cavalheiros. Frascos de loção, boiões de gel, aerossóis de laca.
Uma loja de revenda de artigos em segunda mão. Demasiado fácil. O respigador ambulatório de factos e de objectos não ousaria pedir tamanha diversidade. Uma iogurteira, uma batedeira, um ferro de engomar, CDs de Nicolas Peyrac e Serge Lama, blusas de senhora, caixinhas para medicamentos de inspiração japonesa, camafeus, brincos, argolas de guardanapo, livros de bolso, números antigos da revista Esprit. (Folheio um destes; as margens de todas as páginas estão anotadas com uma caligrafia fina e paciente.)
Se um cataclismo engolisse Paris de um dia para o outro, e se, por um fenómeno extravagante, apenas os objectos deixados nas montras das lojas se salvassem para as gerações futuras, como será que os vindouros reconstruiriam as histórias pequenas e grandes dos habitantes da cidade? Não duvido de que seriam capazes de produzir enredos grandiosos, engenhosos, comoventes. Acima de tudo, enredos autênticos. Os alinhamentos de artigos por detrás do vidro da montra, aleatórios ou planeados com esmero, dirigem-se àquele que passa, ao citadino no seu percurso quotidiano de A para B, procuram seduzi-lo, coincidir com o seu estado de espírito. Tendem naturalmente a identificar-se com os seus anseios, com os seus fantasmas. São os seus intérpretes mais fiéis, os menos dados a falsos pudores ou exageros.
Rue Bullard. Uma escola, no passeio do lado oposto. Consulto a ementa da semana. Concordo com algumas coisas, discordo de outras.
Apetrechos de iluminação: candeeiros, abat-jours, gambiarras, lâmpadas avulsas, lustres.
Logo adiante, artigos para a cozinha: pratos, tigelas, conchas de sopa, travessas, tachos, cafeteiras, esteiras, pegas, caixas para o pão em folha-de-flandres ou em madeira de pinho.
Esses cronistas do passado teriam perante si uma das tarefas mais ingratas. As vidas que eles tentariam reconstituir, com base na cornucópia de achados arqueológicos à sua disposição, seriam forçosamente pletóricas, ricas, absurdamente cheias de variedade. Vidas impossíveis, saturadas de acções capazes de ligar numa cadeia longuíssima uma tão grande densidade de objectos, como numa litania.
Meto por uma transversal, quase por instinto. Rue Daguerre. Aqui predominam as lojas de artigos alimentares, quase todas com mercadoria exposta na rua. Os artigos perecíveis têm poucas hipóteses de alcançar a posteridade. Mas não é de excluir que um aluvião de latas de bebidas e de talheres de plástico forrasse as profundezas dessa Paris pós-apocalíptica.
Uma loja de molduras, coisas robustas. Resistem ao tempo. Evocarão inevitavelmente as imagens que enquadram, menos capazes de resistir aos elementos.
A diversidade, uma diversidade levada a um extremo tão absurdo como esta de Paris, pode trazer embriaguez, mas traz também o desencanto frio e pesado do dia seguinte. São demasiadas coisas e texturas, demasiadas oportunidades de descrever e nomear. Nenhuma narrativa ou vida alguma vez as esgotará.
Mas todas estas ruas insistem em simular uma promessa permanente de sentido e coerência, a hipótese de um vislumbre fugaz que emergisse do marulhar feroz de sons e imagens e que (devo ousar a palavra?) tivesse significado.
“Isenta de moral” (escrevi). É exacto. Este é terreno inóspito para os arrufos entre o bem e o mal. E é assim que deve ser.
Olho para o céu, tento procurar o zénite por cima do asfalto da rua. Mas perder-me neste fragmento de imensidão azul não me ajuda a esquecer a topografia. Estou na demasiado familiar Rue Gassendi. Sei que me basta virar na primeira à direita para avistar ao longe a estátua do Leão de Belfort, que consigo avistar da janela de casa.
O Leão de Belfort, de Alexandre Andrade. Abril de 2016. Relógio d’Água.
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