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Uma assustadora retenção

— Tens razão, reconheceu Trincapregos fazendo estalar as mãos imensa. Se eu não mentisse, que me restaria? Mas os romancistas mentem mais fundo do que eu. Todos eles fazem maus livros, que fazem crer às donzelas que o amor é um viveiro do paraíso e às mulheres que o casamento é um esgoto! Mentirosos, verdadeiros mentirosos e envenenadores, todos esses distintos escritores que mostram as suas poéticas heroínas bebendo e comendo de uma maneira encantadora e trincando com um ar obstinado algumas grainhas de uva. Muito bem, meus senhores, permitam-me que me espante de que nunca nos falem das consequências dessas trincadelas obstinadas. Sim, meus senhores, desde Homero até Tolstoi, os jovens heróis e heroínas sofrem, sobretudo quando são belos, de uma assustadora retenção. Não podem mais. Por exemplo, há mais de trinta anos que uma tal menina Natacha Rostova anda a beber sem que o autor a autorize a retirar-se nem por um instante! Todos os amantes e todas as amantes de Shakespeare, de Racine, de Dante, já não aguentam a continência que lhes foi imposta pelos seus autores. Torcem-se de dores, cruzando as pernas há séculos para manter a decência! Mas, hoje, temos a libertação e a revolta! Eu, Trincapregos, dou-lhes licença e autorização, ó encantadoras heroínas e nobres heróis apaixonados! Confessem que já não podem mais! Vocês todos, martirizados do romance, acabai com essa seca e jorrai finalmente, para longe e com força, num jacto unânime e alegre e verídico, francamente e fraternalmente! Meus senhores, terminei a minha peroração!
Enxugou a testa. Os lábios tremiam-lhe de orgulho e emoção.

Trincapregos, de Albert Cohen, tradução de Pedro Tamen, Contexto, outubro de 1999, páginas 120 e 121 (depois de uma notável análise de Ana Karenina).

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